Observatório da Qualidade no Audiovisual

Madame Satã, sob o risco do real

Ilustração de Madame Satã feito pelo artista Fião, @d1ficio.

Desordeiro. Pederasta Passivo. Dissimulado por índole. Propenso ao crime.

Descrição que consta na folha corrida de João Francisco dos Santos, incluída no filme Madame Satã(2002), de Karim Ainouz.

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O filme Madame Satã (Karim Ainouz, 2002) é um convite a pensar as relações entre o documental e o ficcional, pois romantiza uma história real. O filme é inspirado em uma travesti que viveu no Rio de Janeiro, na década de 1930. João Francisco dos Santos, também conhecido como Madame Satã, foi interpretado no cinema por Lázaro Ramos, homem negro cis, e tal fato é fundamental para se pensar a maneira de se representar e performar um personagem real. Madame Satã começa trabalhando como assistente de camarim em algo parecido com um cabaré e, desde então, há um desejo de estrelar nos palcos, espaço historicamente ocupado por pessoas brancas. O filme, portanto, coloca questões importantes de raça e genêro. Ao cortar vínculos com o estabelecimento, Madame Satã acaba tendo como forma de se sustentar a prostituição, destino de muitas pessoas negras e LGBT.

O filme atravessa um período histórico em que a sociedade brasileira teve grandes mudanças e nossa análise é, também, afetada pelo momento em que é redigida, em  2019, quando debates sociais estão cada vez mais latentes. Partindo de uma perspectiva que coloca em destaque o recorte LGBT e a maneira como essas pessoas são representadas no cinema, propomos algumas questões que guiarão nossos pensamentos. Colocamos, portanto, a seguinte pergunta: qual a validade histórica e a legitimidade de discurso do filme Madame Satã? Pessoas não-LGBTs têm a potência poética a retratar pessoas com vivência e arcos LGBTs?

A partir daí é possível retomar uma importante demanda da comunidade negra nos meios de socialização, a ideia de Descolonização, termo cunhado para dar nome ao processo de distanciamento simbólico da colonização. No contexto brasileiro, esse processo se deu em grande parte com a escravização da população africana e a diáspora compulsória da mesma para o nosso território. O pensamento do colonizado ainda persiste, não nos libertamos das amarras do passado, há uma pirâmide social que nos coloca numa posiçao de inferioridade sem nos consultar. A estética negra é utilizada como ferramenta de resistência, os movimentos ligados à auto-estima são muito significativos na disseminação de ideias de empoderamento dos fenótipos e da cultura de matriz africana. Neste sentido, o filme realiza um importante gesto ao escolher como protagonista um personagem históricamente invisibilizado, colocando Madame Satã num lugar de destaque na narrativa e, ao mesmo tempo, trazendo à tona temas caros à população negra e LGBT.

Através de Madame Satã conhecemos – mesmo que parcialmente – a vivência, os anseios e os desejos da pessoa representada na personagem. Deste modo, o filme nos permite pensar os limites entre o documental e a encenação ficcional. Toda ficção se alimenta do real, e, assim como assinala Jean-Louis Comolli (2008), a escritura cinematográfica coloca o espectador num lugar entre a crença e a dúvida: “No cinema, a dúvida, já que ela é articulada com a verdade da inscrição, sempre é trazida por uma crença; dúvida e certeza se combatem e voltam a atuar em um movimento sincrônico, e essa alternância define o lugar do espectador como lugar incerto, móvel e crítico” (COMOLLI, 2008, p. 171). Toda situação filmada passa pelo documental quando cria uma co-presença entre um sujeito filmado e a câmera. Madame Satã suscita essas questões ao reencenar uma vida real.

A personagem Madame Satã tem domínio sobre os espaços que ocupa, enquanto corpo não hegemônico, ela subverte uma lógica estrutural e se torna atriz social a agitar e influenciar de forma prática sua realidade. No decorrer do filme vemos a maneira como ela renega essa lógica.

Na cena acima, a câmera, em plano fechado, a retrata com um semblante de desejo e no contraplongée, vemos seu local de desejo: o palco onde uma mulher branca e cis está cantando, admirada pelo público. Através da paleta de cores é construída uma relação entre os dois lugares, Os closes em Madame Satã e na mulher fortalecem esta oposição, dando a ver o anseio da personagem por algo distante .

Em outra sequência, ao ser flagrada vestindo roupas da mulher da cena anterior, Madame Satã é humilhada por esta mulher, se descontrola e destrói o camarim enquanto diz: “O nego nao ficou maluco não , tu nunca mais me trata desse jeito…. precisava me tratar desse jeito por uma coisinha de nada?”. A oposição dos closes da cena anterior culmina em um conflito entre as personagens, explicitando, desta forma, a dificuldade de Madame Satã para alcançar aquilo que tanto deseja.

Na cena seguinte, em uma operação de montagem que cria uma relação entre plano e contra-plano criando uma tensão, pois Madame Satã confronta o dono do estabelecimento ao pedir o dinheiro referente ao seu tempo de trabalho.


Em outra situação ela seduz um homem e o leva para sua casa. Os planos são muito fechados nos corpos o que gera uma sensação de intensidade e sedução. Em seguida,Tabu –outra travesti que mora com Madame Satã – entra no quarto causando alarde sobre uma possível batida policial na casa, o que amedronta o homem e faz com que ele fuja. A partir das cenas descritas acima, o que se percebe é que a personagem de João é complexa, mesclando afetividade e brutalidade, potências antagônicas. Vemos nela um desejo de auto-cuidado e de cuidar dos seus próximos. Há, ainda, situações onde a masculinidade e o machismo impostos pela sociedade nos mostram que mesmo uma pessoa que foge aos padrões sociais hegemônicos, reproduz de forma corriqueira condutas tóxicas aos outros e a si mesma.

O que vemos de maneira marcante em Madame Satã, é uma forma de expressão de resistência. Ser travesti é uma forma de resiliência, a quebra diretamente com uma ideia de masculinidade, seu corpo se torna sujeito plural, traça diálogos com nossa sociedade e sua diversidade, arrancando das crenças de forma orgânica e lúdica pautas assintomáticas, que nos fazem pensar e levantar bandeira para um debate urgente. Um realizador branco pode criar um filme que perpassa a poética negra e LGBT, isso se dá numa relação de troca equivalente, em que as pessoas em posição social privilegiada aceitam seu lugar de fala, e ouvem as pessoas historicamente marginalizadas, em um processo de criação conjunta e coerente.

Por Lucas Caetano 

 

Bibliografia:

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

CROCE, Benedetto. Estética como ciência da expressão e linguística geral. São Paulo: É Realizações, 2016.

CUNHA, Marianno Carneiro da. Esboço histórico: o elemento negro nas artes plásticas. In: ZANINI, Walter (org.). História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1983. p.989-1017.

VALLADARES, Clarival do Prado. O negro brasileiro nas artes plásticas. Cadernos Brasileiros, Rio de Janeiro, v.X, n.47, p.97-109, maio/jun. 1968.

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