São Paulo, 2002: na Casa de Detenção Professor Flamínio Fávero, localizada no Complexo Penitenciário do Carandiru, detentos aprendem a utilizar câmeras de vídeo e gravam o interior do maior presídio da América Latina e um dos maiores do mundo. A penitenciária, marcada pelo massacre ocorrido em 1992, que resultou na morte de 111 presos, foi desativada em setembro de 2002, quando três pavilhões foram implodidos e mais de 7.000 presos foram removidos para novas unidades prisionais. As imagens de O prisioneiro da grade de ferro (auto-retratos), (2003), de Paulo Sacramento, foram captadas durante sete meses do ano anterior à desativação, como nos informa em texto inicial o diretor, que também assina a produção e o roteiro do filme.
Na sequência de abertura vemos, de forma invertida, a cena da implosão dos prédios, também evocada para fechar o documentário, delimitando assim o recorte temporal dos assuntos revelados ao espectador no decorrer do filme. Das nuvens de fumaça cor de tijolo vemos ressurgir o prédio, como uma espécie de imagem assombrada, que tenta esconder em fumaça a realidade do sistema carcerário do país. Dessa forma, o “movimento essencial deste filme será (e daí a importância desta sequência inicial) trazer de volta este mundo que se pretende esconder, como o prédio ressurgindo das suas cinzas” (Valente, 2003). Ao propor uma reflexão sobre a realidade do sistema penitenciário brasileiro, o filme manifesta uma posição de contra-hegemonia, indo de encontro às abordagens sensacionalistas e superficiais da grande mídia.
Tema e montagem
Após as imagens da (des)implosão, um texto reforça a particularidade do tema abordado: “- O sistema carcerário brasileiro abriga cerca de 25.000 homens (…). Quase a metade desse contingente encontra-se detida no Estado de São Paulo; – O maior presídio paulista é também um dos maiores do mundo: (…), registra em sua história a passagem de mais de 175.000 detentos.” (O prisioneiro, 2004). Mas o filme não se restringe a mostrar a ineficácia do sistema, revelando “desde a alegria do jogo de futebol e das visitas, às realidades da prática do sexo ou religiosa, até as condições sub-humanas de celas superlotadas e os horrores de um atendimento médico precário e insuficiente” (Valente, 2003).
Para apresentar o tema, o filme foi dividido em 11 capítulos: (1) Abertura; (2) Pavilhão 8; (3) Pavilhão 2; (4) Pavilhão 5’; (5) Pavilhão 4; (6) Pavilhão 6; (7) Pavilhão 9; (8) Pavilhão 7; (9) Pavilhão 5”; (10) A noite de um detento; e (11) Autoridades. Por essa estrutura, somos levados pelos detentos a conhecer as particularidades de cada pavilhão, destacando-se para nós os dois últimos capítulos. Em “A noite de um detento”, a câmera é passada a Joel Aparecido, detento incumbido de gravar a noite no Carandiru, o que rende uma das sequências mais marcantes do filme: Joel filma seu companheiro de cela e aponta a câmera para o que se vê além da janela de grades. Ao amanhecer, registra o companheiro acordar e diz em off, ao filmá-lo junto à janela: “Meu amigo está olhando para fora, pensando na vida, no que poderia estar fazendo lá fora…”, um momento que sintetiza toda a sequência, e mostra a potência do documentário como construção muito próxima do ficcional.
“Autoridades” é o título do capítulo que finaliza o filme, e apresenta, em bloco separado e desconexo do restante, o discurso das autoridades. Vários ex-diretores do complexo falam, e o governador de São Paulo à época, Geraldo Alckmin (2001-2006), discursa na abertura de uma nova penitenciária. Como pontua Valente (2003), a fala de Alckmin destacando o número de vagas criadas para detentos em seu governo mostra-se como parte de um universo totalmente distinto da realidade que presenciamos no filme.
Relação personagens/diretor e a voz do documentário
Para Eduardo Coutinho, o documentário é sempre uma negociação: “você tem que se servir do desejo do outro para que haja filme. Isso porque, na verdade, a negociação que ocorre antes, durante e depois da filmagem, mas, sobretudo, durante, é uma negociação de desejos” (Cf. Mourão; Labaki, 2005: 131). O prisioneiro da grade de ferro expressa de forma contundente essa ideia de negociação, visto que neste filme as relações entre documentarista e documentados assumem características particulares. Paulo Sacramento, ao optar construir o filme a partir da visão dos detentos sobre o Carandiru, propôs a realização de uma oficina de vídeo, que foi ministrada por André Luís da Cunha (fotografia) e Louis Robin (Som), apresentando aos detentos os princípios técnicos necessários ao manejo da câmera, um equipamento digital igual ao usado pelo diretor de fotografia, Aloysio Raulino. Esse formato de realização mostra certo reconhecimento do diretor de suas impossibilidades, dos limites impostos ao seu conhecimento do ambiente do presídio. Assim, o movimento de “câmera na mão dos detentos” foi trabalhado na montagem, de forma a mostrar que a realidade é “fluida, inconstante e complexa” (Valente, 2003).
A proposta de Sacramento remete, pois, a uma noção de negociação que permeia toda a constituição da obra e que apresenta os personagens como participantes ativos na construção do filme, e não apenas detentos vistos por intermédio da câmera do diretor. Logo numa das primeiras cenas do filme, “FW”, um dos detentos, com a câmera na mão, canta um rap e explica ao espectador o que ele vai ver, em fala que remete à inclusão da expressão “auto-retratos”, em parênteses, como subtítulo do filme: “É a realidade na tela”; “o filme começa agora”; “esse é o Carandiru de verdade; é nosso autorretrato” (O prisioneiro, 2004). Observamos que o som no filme é todo diegético, não havendo trilha musical ou narração em off. Tudo o que ouvimos faz parte do que é filmado, seja pelos detentos ou pela equipe técnica.
Pela montagem, feita por Paulo Sacramento (profissional com larga experiência como montador) e Idê Lacreta, as imagens feitas pelos detentos são justapostas àquelas feitas pelo diretor de fotografia, reforçando o argumento de que estamos diante de autorretratos, feitos pelos próprios personagens do filme. Raulino, o diretor de fotografia, chegou a dizer em entrevista que não se lembrava mais quais imagens tinham sido feitas por ele e quais eram dos detentos. Sabemos, porém, que no cinema é geralmente o diretor quem organiza, na edição, as vozes a serem incorporadas ao filme, assim como a lógica dos discursos.
Podemos destacar, por fim, as relações do filme com o espectador, que é convocado a compartilhar as experiências dos detentos, através de suas descrições sobre cada local e do acompanhamento próximo do seu cotidiano. Tatiana Monassa observa que, na maioria das vezes, o acesso à realidade apresentada é feito, no caso dos documentários, através da figura de um mediador e não de um contato direto. Ao usar a figura do mediador, os filmes descartam a “visceralidade” presente nas relações entre o espectador e o tema, presentes, por outro lado, em O prisioneiro da grade de ferro, filme que afirma a impossibilidade de uma mediação que não seja a da própria câmera, presente diversas vezes na imagem, “numa auto-reflexividade que integra o processo de imersão, uma vez que legitima nossa entrada no ambiente, […] o acesso a todas as imagens e narrativas” (Monassa, 2005: 115).
Assista ao documentário: https://www.youtube.com/watch?v=dlIv7Pg5Ud0
Referências:
COLUCCI, Maria Beatriz. Violência urbana e documentário brasileiro contemporâneo. Campinas, SP: [s.n.], PPG Multimeios/Unicamp, 2007. Disponível em: <http://cutter.unicamp.br/document/?code=000400906>.
MONASSA, Tatiana. Da imersão, ou como a postura cinematográfica determina uma postura social. In: CAETANO, Daniel (org.). Cinema brasileiro 1995-2005: ensaios sobre uma década. Rio de Janeiro: Azougue Editoral, 2005, p. 111-120.
MOURÃO, Maria Dora; LABAKI, Amir (org.). O cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
O PRISIONEIRO da grade de ferro (auto-retratos). Direção: Paulo Sacramento. Produção: Gustavo Steinberg e Paulo Sacramento. Intérpretes: Celso Ferreira de Albuquerque; Jonas de Freitas Cruz; José Heleno da Silva; João Vicente Lopes. Roteiro: Paulo Sacramento. [S.I]: Olhos de Cão; Califórnia Filmes, 2004. 1 DVD (124 min), son., color, DVD.
VALENTE, Eduardo. O prisioneiro da grade de ferro (autoretratos). Contracampo. Rio de Janeiro, n.53, 2003. Disponível em: <www.contracampo.com.br/53/prisioneirodagradedeferro.htm>.
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