Por Lucas Vieira e Daiana Sigiliano
Exibida pelo canal estadunidense ABC, a série Station 19 (2018-atual) é o segundo spin-off de Grey’s Anatomy (2005-atual). A trama, que vai ao ar nos Estados Unidos antes da série médica de Shonda Rhimes, é centrada em um grupo de bombeiros da cidade de Seattle. Produzida por ShondaLand, desde a terceira temporada a atração explora a relação entre Carina DeLuca (Stefania Spampinato), personagem originalmente apresentada em Grey’s, e Maya Bishop (Danielle Savre), uma das protagonistas de Station 19. O shipp Marina foi instantaneamente abraçado pelos fãs, a cada novo episódio exibido pela ABC novos conteúdos são produzidos pelos telespectadores interagentes e os termos relacionados ao casal frequentemente ocupam os Trending Topics do Twitter.
Atualmente o arco narrativo relacionado ao casal é centrado nas questões envolvendo a maternidade. Porém, o modo como o tema vem sendo discutido na trama tem gerado inúmeras discussões no fandom. Abrangendo reflexões sobre representatividade na TV comercial estadunidense, a quebra de estereótipos e a importância de retratar a complexidade que envolve o assunto. Segundo os fãs, que ao longo da quinta temporada vem se mobilizando a partir de indexações e, principalmente, na criação de threads no Twitter compartilhando relatos sobre as nuances que envolvem a maternidade no relacionamento de um casal sáfico, ao privilegiar o plot de Jack (Grey Damon), que na história é o doador do esperma para a inseminação de Carina, o universo ficcional invisibiliza a população LGBTQIA+.
Nesta análise iremos discutir as dimensões da competência midiática, propostas por Ferrés e Piscitelli (2015), em operação em dois perfis no Twitter gerenciados por fãs do shipp Marina. No microblogging, Susy (@AllStarsLA) e Valentina (@marshcaps) produzem fanarts que ampliam os desdobramentos quinta temporada, encerrada recentemente nos Estados Unidos, aprofundado o relacionamento de Carina e Maya e expandindo criticamente o arco narrativo sobre a maternidade.
De acordo com Jenkins (2012), às práticas da cultura de fãs podem ser motivadas por cinco elementos, são eles: sementes, buracos, contradições, silêncios e potenciais. Nas fanarts produzidas por Susy e Valentina podemos observar a predominância de dois elementos. Segundo o autor (2012, p. 16), as sementes são “[…] pedaços de informação introduzidos na narrativa para indicar um mundo maior que não é completamente desenvolvido na própria história”. Ao retratar detalhes do relacionamento de Carina e Maya como, por exemplo, momentos íntimos e viagens, as fãs ampliam o universo ficcional de Marina, introduzindo as personagens a contextos que não foram explorados pela ABC. Desde modo, ao acompanhar os tweets publicados pelas fãs, os telespectadores interagentes têm acesso a desdobramentos do relacionamento, fortalecendo a relação parassocial do público com as personagens.
Fonte: @AllStarsLA
Outro elemento, proposto por Jenkins (2012), presente nas fanarts, são os potenciais. Isto é, “[…] projeções sobre o que poderia ter acontecido além dos limites da narrativa” (2012, p. 18). Os conteúdos publicados no Twitter mostram a rotina de Marina com o filho, apesar do arco estar em aberto na trama, na produção dos fãs podemos acompanhar as dificuldades na criação da criança, explorando um acontecimento que ainda se concretizou no cânone. Neste contexto, as publicações ressaltam em tom cômico o contraste entre as personalidades de Maya e Carina, desdobrando os contratempos do dia a dia em tarefas como levar o filho para a escola, visitar o trabalho das mães, etc.
Apesar das seis dimensões (linguagem, tecnologia, processos de interação, processos de produção e difusão, ideologia e valores e estética) da competência midiática estarem em operação nas fanarts criadas por Susy (@AllStarsLA) e Valentina (@marshcaps), nesta análise iremos focar em três. Segundo os autores, além da capacidade de interpretar, avaliar, analisar, compreender e correlacionar diversos códigos, formatos e gêneros midiáticos, a dimensão Linguagem está relacionada com a habilidade de produzir e ressignificar conteúdos a partir de diversos modos de representação e produção de sentido.
Ao transpor o universo audiovisual de Station 19 para o formato das histórias em quadrinhos as fãs exercem sua capacidade de reconhecer as características e especificidades de cada linguagem. Ou seja, apesar de apresentar novos desdobramentos narrativos, os desenhos são compostos por elementos familiares e recorrentes ao cânone da série. Tais como os cenários e a fisionomia das personagens, contribuindo para a verossimilhança da fanfic. Como, por exemplo, a ilustração publicada por Susy, em que a fã parte da composição imagética da série, reproduzindo o quarto do casal (cama, quadro, cor da parede, etc), mas aprofunda a relação entre as personagens, mostrando um momento íntimo entre elas.
Fonte: @AllStarsLA
Outro ponto em diálogo com a dimensão Linguagem são os plots escolhidos por Susy (@AllStarsLA) e Valentina (@marshcaps), ao consumir as ilustrações os telespectadores interagentes podem acompanhar Carina e Maya em situações que não seriam viáveis na ABC. Por se tratar de um canal aberto, as série produzidas pela emissora raramente exibem sequências gráficas de sexo, para suprir essa lacuna os fãs recriavam, com base nos elementos caracteristicos da trama, as cenas do universo ficcional, mas com detalhes mais exibicitos de trocas de carinho entre as personagens. As ilustrações com conotação sexual também se distanciam da heteronormatividade e de clichês que geralmente são associados aos casais sáficos.
De acordo com Ferrés e Piscitelli (2015, p.5-15) a dimensão Ideologia e Valores ressalta a capacidade de avaliar, analisar, reconhecer os conteúdos considerando seus distintos recortes culturais e sociais, identificando e questionando os estereótipos (de gênero, raça, etnia, classe social, religião e etc.) e os mecanismos de manipulação. Além da habilidade de elaborar e modificar os conteúdos midiáticos, se comprometendo com a cidadania, a fim de transmitir valores e colaborar para a melhoria da sociedade.
Ao ampliar um arco narrativo focado em um casal sáfico as fãs exploram abordagens que não são recorrentes no âmbito da ficção seriada. Como pontua Jamison (2017) que as histórias protagonizadas por minorias e pautadas pela diversidade apresentam desdobramentos que seriam, de certa forma, inviáveis no mercado comercial, estimulando não só a reflexão do autor sobre os padrões reproduzidos pelo mainstream, mas propiciando aos leitores acesso a conteúdos que se distanciam dos recursos convencionais. De acordo com a autora, “O poder da fanfiction está na habilidade de reimaginar textos e resistir a significados impostos pelos criadores destes textos” (JAMISON, 2017, p. 136). Desse modo, as fanart além de reforçarem a importância da representatividade, refletem sobre a forma como a população LGBTQIA+.
Desta forma, a própria escolha das fãs em ampliar o shipp Mariana vai ao encontro da dimensão. Além disso, a produção das fanarts promove a reflexão sobre o modo como os casais sáficos são retratados na TV estadunidense a partir da ressignificação dos arcos narrativos. As HQs buscam romper com estereótipos e questões ligadas à heteronormatividade, abordando pontos como a sexualidade e a maternidade. Neste sentido, a produção de fanarts expande tanto questões diretamente problematizadas pelo fandom quanto arcos narrativos que o público gostaria de ver no ar. Como, por exemplo, a viagem de Cariana e Maya à Itália. Na ilustração de Susy, observamos as personagens nos principais pontos turísticos do país, como um álbum de fotos de Marina.
Fonte: @AllStarsLA
A dimensão Estética se refere à capacidade de relacionar e identificar referências intertextuais, explorando novas camadas interpretativas, e também de produzir conteúdos pautados na criatividade e na originalidade (FERRÉS; PISCITELLI, 2015). A dimensão proposta por Ferrés e Piscitelli (2015) pode ser observada no compartilhamento do processo criativo dos desenhos, nos tweets publicados por Susy (@AllStarsLA) e Valentina (@marshcaps) mostravam ‘spoilers’ das ilustrações como, por exemplo, os traços ainda sem colorir, o planejamento dos quadros e as referências do universo ficcional. Como, por exemplo, o tweet publicado por Valentina, em que a fã correlaciona uma cena do cânone com a ilustração que está produzindo, destacando a verossimilhança com o universo ficcional.
Fonte: @marshcaps
Os perfis gerenciados pelas fãs também reforçaram a produção colaborativa do fandom. Isto é, Susy e Valentina pediam frequentemente sugestões aos interagentes sobre quais temas deveriam explorar, comentários sobre os desenhos postados, etc. Desde modo, as ilustrações partiam da construção coletiva dos fãs ressaltando tanto elementos do cânone quanto referências externas ao universo ficcional tais como letras de música, filmes, entre outros.
Por fim, as cenas de Maya e Carina são adaptadas para a linguagem das HQs, fazendo com que as fãs desenvolvam a capacidade de sistematização dos diálogos e adaptar o cânone. Como, por exemplo, a tirinha publicada por Valentina no Twitter.
Fonte: @marshcaps
No desenho a fã parte do contraste entre as personalidades de Maya e Carina, explorado no universo ficcional de Station 19, para projetar como serão os percalços na criação do filho do casal.
Portanto, conclui-se que o processo de produção, distribuição e consumo da fanarts no fandom de Mariana estimula diversos modos de aprendizagem. Ao criar uma HQ baseada no cânone de Station 19 Susy e Valentina refletem criticamente sobre a trama, identificando as possíveis lacunas narrativas, principalmente as relacionadas a população LGBTQIA+ e o modo como esta é retratada na ficção seriada estadunidense, e quais são seus possíveis desdobramentos.Com base nesta leitura atenta que as fãs, mantem as características fundamentais daquele paratexto, trazendo verossimilhança a produção, e ressignificam outros pontos da história indo ao encontro da produção coletiva de sentido do fandom que integram.
Referências:
FERRÉS, J; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, v.9, n.1, p. 1-16, 2015. Disponível e: <https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/21183>. Acesso em: 29 mai. 2022.
JAMISON, A. Fic – Por que a fanfiction está dominando o mundo. São Paulo: Rocco, 2017.
JENKINS, H. Lendo criticamente e lendo criativamente. Matrizes, v.9, n.1, p. 11-24, 2012. Disponível em: < https://bit.ly/2I9TWnn>. Acesso em: 29 mai. 2022.
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