Por Gustavo Furtuoso
Em 2020, tivemos um Dia das Mães diferente. Celebrado no segundo domingo de maio, a data comemorativa é a segunda que mais movimenta o comércio em nosso país, ficando apenas atrás do Natal. Este ano, entretanto, a pandemia de COVID-19, que impactou o mundo todo de forma abrupta e significativa, já estava bastante presente na vida dos brasileiros quando o mês de maio chegou. Por ser uma doença de fácil contágio, a melhor maneira encontrada para evitar um grande número de adoecimentos e o colapso do sistema de saúde foi o isolamento social.
Todos os locais que favorecem o surgimento de aglomerações tiveram que ser fechados: escolas, universidades, igrejas, shopping centers. Com isso, sofremos um grande impacto em nossas rotinas e tivemos de nos adaptar a esta nova realidade. Uma realidade cuja duração e efeitos ainda são desconhecidos. Com as lojas fechadas, salvos serviços essenciais, a importância de um comércio virtual ou por delivery cresceu exponencialmente. Assim como a necessidade de ser lembrado pelos consumidores quando estes forem às compras na internet.
Diante disso, as marcas que normalmente investem em campanhas nessa época precisaram repensar suas estratégias para abordar esse momento de incerteza, tristeza e preocupação em peças que tradicionalmente veiculam sentimentos positivos e felizes. Kotler (2012) chegou a afirmar que o objetivo do marketing em sua fase atual é “fazer do mundo um lugar melhor”, tarefa que se torna mais complicada quando vivemos uma pandemia. É importante ressalvar que esse “mundo melhor” apontado pelo autor está inserido em uma ideologia de mercado, onde o prazer e a felicidade são diretamente associados ao que se consome.
Desse modo, a emergência sanitária, social e econômica causada pela Covid-19 contrasta significativamente com o ideal de vida e bem-estar difundido pela publicidade e é tão forte que não pode ser ignorada por ela. Mas é justamente nessas situações que um plano de comunicação mercadológica voltado para as especificidades e necessidades, mesmo que emocionais, dos consumidores se torna mais relevante. Diretamente impactados tanto no âmbito pessoal quanto econômico, a publicidade se torna uma voz tranquilizadora que pode prometer que tudo vai dar certo, pois sua voz representa uma vontade, um anseio, não uma certeza. Nesse contexto, “as empresas que praticam o marketing 3.0 oferecem respostas e esperança às pessoas que enfrentam esses problemas e, assim, tocam os consumidores em um nível superior” (KOTLER, 2012, p. 17).
E foi o que fez a varejista Casas Bahia. A empresa comercializa eletrodomésticos, eletroeletrônicos, móveis e utilidades domésticas, com mais de 60 anos de atuação no mercado brasileiro. A marca que surgiu com a ideia de servir as camadas populares, hoje possui mais de 300 lojas, com 10 milhões de consumidores. Pelo seu plano de negócios e sistema criados para favorecer o crédito e o poder de compra dos consumidores mais pobres, a empresa foi objeto de estudo do indiano C.K. Prahalad, professor na Universidade de Michigan, falecido em 2010. Ele pesquisou em nível global os mercados de baixa renda e companhias que voltaram seu marketing para o que chama de base da pirâmide, sendo a Casas Bahia uma das 12 marcas que compõem o estudo.
Para a campanha de Dia das Mães de 2020 foi escolhido o mote #TudoVaiFicarBem, retratando as expectativas e preocupações de três gestantes que aguardam o nascimento de seus bebês neste momento de pandemia. De acordo com o perfil da empresa e das personagens retratadas em vídeo, podemos notar que o público-alvo do comercial são famílias de média ou baixa renda, em especial as mulheres. A peça é assinada pela agência Y&R Brasil.
O filme publicitário tem a função intrínseca de promover um produto ou marca, mas o faz através de recursos oriundos da produção cinematográfica. Sendo assim, ferramentas de análise fílmica são aplicáveis para desconstruir a peça e entender seus objetivos (ANEAS, 2013). Como metodologia, portanto, nesta análise serão identificadas as dimensões fílmica e promocional no comercial em questão e, a partir delas, serão observados três indicadores que abrangem os aspectos mais relevantes para o estudo, inserindo-o no campo da literacia midiática: linguagem, estética e ideologia e valores (FERRÉS; PISCITELLI, 2015).
Tratando das características fílmicas, o vídeo em questão é um relato testemunhal de diferentes mães, que compartilham as angústias de viverem uma fase tão importante de suas vidas em meio a um cenário tão preocupante e desolador. As cenas são tomadas em ambiente doméstico, que é contrastado com planos gerais das ruas, mostrando como elas estão vazias neste período de isolamento social. Assim, a narrativa da peça é construída para transmitir a ideia de segurança nas casas das mães – reforçando a mensagem sobre ficar em casa para se proteger.
A pergunta “como é ter um filho em tempos tão difíceis?”, em texto, propõe uma reflexão junto ao público, trazendo um elemento de identificação e aproximação com os relatos das diferentes mães que participam da peça. É uma forma de se posicionar junto a seus consumidores como uma marca consciente, atenta ao que acontece no mundo e empática com as dificuldades que estão vivendo neste período tão incerto. Paralelamente, o apelo dramático utilizado põe em evidência questões difíceis e que geram certa ansiedade no público, abrindo espaço para a catarse que o comercial oferece ao final.
Após compartilharem alguns de seus anseios, as mães recebem um presente das Casas Bahia. Ao abrir, se deparam com eletrônicos – smartphone e notebook – que contêm imagens de ultrassom e uma voz de criança falando sobre o futuro e o cotidiano que estão vivendo, como: “O vovô também está muito bem, agora a gente vai almoçar na casa dele toda hora”. É possível perceber que a principal intenção da campanha é transmitir mensagens de otimismo, esperança e conforto. E faz isso não apenas a mulheres que vivem a gestação neste momento, mas a todas as mães de forma geral, pois apela a sentimentos de preocupação com o mundo que estamos deixando para as próximas gerações.
Em sintonia com os princípios do marketing atual, o comercial da Casas Bahia tenta acessar as expectativas presentes no imaginário de seu público e assegurá-las, mesmo que de forma fictícia e até surreal, levando em conta o contexto representado. Do ponto de vista do consumo, a peça consegue manter a atmosfera positiva e leve, pois ressalta apenas aquelas consequências vistas como benéficas resultantes da pandemia. Ao mesmo tempo, ela apaga os muitos efeitos negativos que podem se suceder e faz uma promessa de futuro melhor que não pode ser embasada em nenhum dado concreto. Percebe-se então que a marca prioriza uma identificação com os anseios do público e um posicionamento acolhedor, mesmo que através de uma construção narrativa dramática.
Os eletrônicos presentes nos comerciais aludem à estética das formas de comunicação mediadas pela tecnologia, que se tornaram mais recorrentes e importantes durante o isolamento. A trilha sonora e a predominância de cores leves e claras se somam na criação de um ambiente aconchegante e ameno para o comercial, numa forma de equilibrar o plano do conteúdo com o plano da expressão ao envolver um assunto pesado e difícil numa atmosfera tranquilizadora e reconfortante. Uma intenção que está presente no âmago da publicidade de forma geral, evidenciando o arranjo dos recursos fílmicos sob uma perspectiva que visa, acima de tudo, promover a marca e seus produtos.
Com relação ao tipo de linguagem predominante no vídeo, nota-se que a mensagem foi produzida através do apelo emocional, e não racional. O tom testemunhal dos relatos, que tem como estratégia representar a voz de pessoas comuns, busca gerar uma identificação rápida para outras mulheres. A narrativa objetiva suscitar sensações no telespectador, mais que construir um argumento lógico. O sentimento de ansiedade e preocupação logo é confortado com palavras carinhosas e otimistas das crianças. A inversão de sensações acontece de maneira um tanto abrupta, tornando explícito o percurso idealizado para o consumidor ao assistir o comercial, ou seja, parte de um local de incerteza e medo para um destino seguro e feliz, ainda que fantástico.
Os principais valores transmitidos pela peça são otimismo e a esperança de um futuro melhor, livre da pandemia e com transformações positivas proporcionadas por ela, como uma maior aproximação entre as famílias. A ideia de segurança também é enfatizada, uma vez que a prioridade dessas mães é proteger seus filhos, seus entes queridos e a si mesmas diante de um momento tão ameaçador. As imagens da cidade como um ambiente inóspito e vazio são contrastadas com os ambientes domésticos e acolhedores para reforçar essa ideia. As mães são identificadas, assim como seus filhos, e refletem uma preocupação também com a representatividade da diversidade da população, ao trazerem diferentes perfis de personagens.
Com relação à dimensão promocional, que tem por objetivo divulgar um produto, marca, empresa ou figura e gerar um engajamento emocional do público (ANEAS, 2013), o comercial não tem um apelo de vendas direto. No entanto, é feito em ambientes domésticos, com móveis e eletrônicos que são produtos vendidos pelas Casas Bahia e correspondem ao perfil de consumo de um público que a marca sempre priorizou em sua história. Assim, ela reforça que está na vida das pessoas e que continuará assim no futuro. Os presentes que as mães recebem no comercial – eletrônicos que trazem as vozes das crianças – e a interação com tais dispositivos também são uma forma indireta de aludir que é possível comprar o presente do dia das mães com a empresa, através do site ou do aplicativo.
Considerando o objetivo da própria marca, as Casas Bahia encontraram uma saída interessante para tratar o momento de celebração do Dia das Mães num período tão obscuro. Ao incorporar as preocupações e anseios das mães no próprio vídeo, foi possível não apenas abordar essas questões, como amenizá-las e dar um alento a elas. A ideia dos discursos dos bebês que ainda estão por nascer, traz um ar lúdico, leve e otimista. Entretanto, ao reconfortar o público, emprega uma ficcionalização da realidade para assegurar a narrativa com final feliz, herança do cinema clássico e que permanece como uma expectativa no imaginário coletivo. De forma simplista, a marca faz uma promessa que não tem como assegurar que será cumprida, pois antecipa um cenário de superação de crise que é apenas hipotético. Assim, consegue pelo menos encontrar identificação com o público, fazendo da peça uma representação dos votos da empresa mais que uma afirmação de um futuro que não pode ser previsto.
Referências
ANEAS, T. Premissas para aplicação de análise fílmica à publicidade audiovisual: um exercício analítico de Always a Woman. Cadernos de comunicação, v.17, n.18, jan-jun 2013. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/ccomunicacao/article/view/10896 . Acesso em: 03 jul. 2020.
FERRÉS, J.; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, v. 9, n. 1, 30 jun. 2015. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/21183/11521. Acesso em: 03 jul. 2020.
KOTLER, Philip. Marketing 3.0 [recurso eletrônico] : as forças que estão definindo o novo marketing centrado no ser humano / Philip Kotler, Hermawan Kartajaya, Iwan Setiawan ; [tradução Ana Beatriz Rodrigues]. – Rio de Janeiro : Elsevier, 2012. recurso digital (p.16 e 17)
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