A temática LGBT+ – de maneira particular homens gays – teve amplo espaço na indústria Hollywodiana das décadas de 1920-1930. Conforme aponta Luis Nazario (2007, p. 97), a pressão das Igrejas nos Estados Unidos culminou na promulgação do Código Hays. De acordo com o Código, a partir de março de 1930, as produções passaram a estar sujeitas a aprovação da Production Code Administration (PCA). O autor destaca que:
Contudo, pelo efeito mesmo dessa repressão, Hollywood acabou criando um universo que, por sua natureza anti-realista, era mais estimulante para a fantasia erótica – para toda fantasia – que a dessublimação repressiva que viria com o fim do Código. (NAZARIO, 2007, P. 97)
Dentre as produções que ousavam incluir personagens LGBT+, Lucas Bettim (2015, p. 108) destaca que essas representações foram construídas com o intuito de reafirmar a superioridade masculina heterossexual. Entre 1960 e 1970, os filmes invisíveis de Andy Wahrol, Paul Morrisey e Kenneth Anger foram responsáveis por avanços na forma de retratar tais categorias sociais, ainda que relegados ao cinema independente e alternativo (NAZARIO, 2007; BETTIM, 2015; MAIA, 2016). Bettim (2015, p. 109) considera que o cinema experimental “explorava sem pudor o corpo masculino, personagens transgêneros, drogas e sexo”. Já Nazario (2007, p. 101-102) destaca que até o fim da década de 1980, mesmo nos filmes underground, ainda era preponderante a ideia de que era impossível unir expressões dissidentes de gênero e sexualidade com felicidade.
A partir do surgimento do vírus HIV e de suas consequências – culminando na Síndrome Da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) – a temática que já era reprimida passou a encontrar ainda mais obstáculos. Estigmatizada como peste gay, a doença não foi tópico por muito tempo nas produções audiovisuais e, quando tornou-se pauta, o cinema comercial estadunidense promoveu “associações de advertência entre o sexo e a morte, aludindo à doença através da metáfora dos parceiros sexuais suspeitos, perigosos, maníacos, assassinos” (NAZARIO, 2007, p. 102).
A partir da década de 1990, surgiram uma série de filmes que compunham uma nova fase na representação LGBT+, denominador por B. Ruby Rich como New Queer Cinema. Segundo a autora, esses filmes estavam “rompendo com abordagens humanistas antigas […] são irreverentes enérgicas, alternadamente minimalistas e excessivas” (RICH, 2005[1992], p. 20). O principal elemento, contudo, destacado por Rich é a exploração do prazer.
Nesse contexto está inserido Paris is Burning (Jennie Livingston, 1990). Pretende-se, aqui, avaliar a representação dos corpos marginalizados que estão contidos no filme. Gravado durante a década de 1980, o filme retrata os balls (bailes) frequentados e construídos por homens gays, mulheres transsexuais e diversos componentes da comunidade LGBT+, principalmente negros e latino-americanos.
O documentário é situado no Harlem, bairro logo ao norte do Central Park e da Quinta Avenida, em um dos espaços mais caros do mundo. Principalmente a partir de 1990, o bairro sofreu um processo de gentrificação que expulsou parte da comunidade negra e latina do bairro. Segundo Schaffer e Smith (1986, p. 350-51), duas imagens predominavam nas memórias: a renascença do Harlem dos Panteras Negras e/ou um gueto predominantemente composto pela classe trabalhadora negra. Bernt (2012, p. 3057) destaca que as mudanças “não ocorreram como um resultado estrutural de forças anônimas de mercado, mas como consequência de mudanças em políticas públicas”. Nesse sentido, o filme também retrata as mudanças sociais na ocupação do espaço urbano de uma das maiores cidades do mundo e se tornou um importante objeto de estudo interdisciplinar.
A representação LGBT+ em Paris is Burning
Paris is Burning foi produzido entre 1983 e 1989 pela cineasta estadunidense Jennie Livingstone. Em entrevista a Orlando Sentinel (1991), Livingstone declarou que o filme é sobre “como somos todos influenciados pela mídia, como nos esforçamos para atingir as demandas da mídia tentando parecer com modelos da Vogue ou tendo um grande carro”.
O início de Paris is Burning já traz importante significantes que deixam claro a temática a ser tratada: vê-se um letreiro que convida à uma conferência de uma Igreja supremacista branca, uma fala em off é inserida apontando a tripla estigmatização de um homem gay e negro e em seguida Pepper LaBeija entra em uma ballroom com um imponente vestido e ornamentos dourados. O filme é estruturado a partir da alternância entre entrevistas e imagens dos balls. Entre as cenas, são inseridas cartelas que servem como indicativos ao espectador da temática a ser articulada naquele momento como, por exemplo, gírias ou categorias a serem explicadas e, também, outras identificando os personagens que estão dando seus depoimentos pela primeira vez na narrativa.
Ball culture se refere a organização de bailes-competição que incluíam uma série de categorias tais como realness (quando um(a) participante conseguia personificar o modo de vestir dos ricos e brancos assim como drag queens e mulheres transsexuais que se aproximavam da imagem tida como gênero representado) e vogguing (uma dança com nome inspirado na revista Vogue em que o intuito é replicar as poses de modelos com movimentos). Um entrevistado não-creditado compara os balls à campeonatos de esporte para heterossexuais. Outro comenta apontando que são uma espécie de oásis em que podem se sentir bem como não se sentem no mundo.
Explorando as categorias dos balls, explicações para as gírias e expressões típicas dos participantes além das histórias de participantes legendários, Paris is Burning se dedica a explorar a fundo uma subcultura que se tornaria um fenômeno mundial. A motivação para participação é um dos pontos centrais: nos balls os sujeitos marginalizados, coibidos pela sociedade, podem então se sentir parte integrante de um mundo onde impera a lógica do capital.
Pepper LaBeija tem um importante papel durante todo o filme. Ela contextualiza o conceito de house (casa) nesse contexto: uma espécie de família escolhida por aqueles que se desvencilharam de suas próprias, dadas as circunstâncias. Um integrante mais velho e experiente age no papel de mother (mãe) para guiar e conduzir os mais novos.
A própria composição dos balls, com suas múltiplas categorias, colabora com a multiplicidade de sujeitos representados no documentário. Existe espaço para gays heteronormativos e afeminados, drag queens jovens e mais velhas, assim como mulheres transexuais. Ken Pedavis e Freddie Pendavis são um casal de homens gays; Dorian Corey é uma drag queen experiente; LaBeija e Venus Xtravaganza são mulheres transexuais. Toda essa complexidade da cena que tenta abarcar todos os socialmente excluídos está refletida na construção da narrativa.
Provavelmente a categoria mais explorada no filme é realness (algo como autenticidade). O conceito se aproxima do argumento defendido por Livingstone de que a produção é baseada na influência midiática, mas no contexto caminha para além disso. Em realness, se busca retratar ou personificar “sua contraparte heterossexual”, nas palavras de Corey, ou garantir uma imagem passável de uma mulher branca ou banjee girl (algo como garota da quebrada). Ser autêntico nesse espectro significa mais do que um jogo de imitação da cultura branca heteronormativa, mas também um momento de expressar um verdadeiro jeito de ser.
Considerações Finais
Paris is Burning tem um inegável legado na cultura pop. Will Ninja, um dos personagens, participou do clipe de Vogue (1990) da cantora Madonna que ajudou a popularizar a dança. As gírias (legendary, mother, house); os processos sociais (read, shade) são centralizantes em RuPaul’s Drag Race (2009-atual, VH1), um reality show com drag queens que se tornou um fenômeno cultural; a representação trouxe luz a sujeitos marginalizados apagados pela sociedade. Contudo, é importante ressaltar que a circulação desses tópicos ainda é restrita a certos nichos e tende a ser incorporada por motivações econômicas visando acima de tudo o lucro.
O documentário se apresenta ainda como um retrato histórico de um momento fértil da cultura LGBT+ estadunidense, do entretenimento da classe trabalhadora, dos afro e latino-americanos isolados em um abismo social que condena-lhes precocemente a morte. Como dito por Maia (2016, p. 37), Livingston soube captar a essência dessa cultura mesmo não sendo nem negra ou latina. E, nesse sentido, o documentário tem um importante peso nos olhares voltados a corpos e sujeitos marginalizados que podem, enfim, começar a contar suas próprias histórias.
Por Vinícius Guida
Referências
BERNT, M. The ‘Double Movements’ of Neighbourhood Change: Gentrification and Public Policy in Harlem and Prenzlauer Berg. In: Urban Studies, v. 49, n. 14, p. 3045–3062, 2012. Disponível em < https://doi.org/10.1177/0042098012437746>. Acesso em 26 mai. 2012.
BETTIM, L. Um Certo Old Queer Cinema. In: MURARI, L.; NAGIME, M. (Orgs.). New Queer Cinema – Cinema, Sexualidade e Política. São Paulo: Caixa Cultural, p. 108-111, 2015. Disponível em < http://bit.ly/2YRorCB>. Acesso em 26 mai. 2019.
MAIA, P. Queer e a Câmera. In: Catálogo Forum.doc. Belo Horizonte, p. 27-47, 2016. Disponível em <http://bit.ly/2W5yhUn>. Acesso em 26 mai. 2019
NAZARIO, L. O outro cinema. Aletria, v. 16, jul-dez, p. 94-109, 2007. Disponível em < http://bit.ly/2YNnaMT>. Acesso em 26 mai. 2019
RICH, B. R. New Queer Cinema. In: MURARI, L.; NAGIME, M. (Orgs.). New Queer Cinema – Cinema, Sexualidade e Política. São Paulo: Caixa Cultural, p. 18-29, 2015. Disponível em < http://bit.ly/2YRorCB>. Acesso em 26 mai. 2019.
SCHAFFER, R.; SMITH, N. The Gentrification of Harlem? In: Annals of the Association of American Geographers, v. 76, n. 3, p. 347–365, 1986. Disponível em <http://bit.ly/2Wr9Hgf>. Acesso em 26 mai. 2019.
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