Observatório da Qualidade no Audiovisual

A discussão sobre a sexualidade nas fanfics de Limantha

Por Daiana Sigiliano 

Pautada por diversas controvérsias, as fanfics da saga Crepúsculo foram a porta de entrada de Lídia para esta prática da cultura de fãs. De acordo com Jamison (2017) o fandom da obra de Stephenie Meyer foi, por muito tempo, constantemente difamado, zombado e ridicularizado. Entretanto, um dos pontos centrais das produções dos fãs da saga é a compreensão crítica das incoerências do cânone. Como afirma a autora, “Fãs de Crepúsculo foram inspiradas por um livro que elas podem ter amado, mas que muitas também viram como sendo ele mesmo derivativo e amador” (JAMISON, p.183, 2017). Neste sentido, como iremos detalhar adiante, a contestação do paratexto e a identificação de lacunas na história são habilidades inerentes as fanfics criadas por Lídia. 

Segundo a fã, por ser baseada em um universo ficcional preexistente a produção de fanfics ajudou no seu bloqueio criativo. “Escrevo desde sempre, e por mais que eu tentasse histórias originais, não conseguia concluir nada […] escrever sobre personagens pré-estabelecidos, com características, personalidade e gostos que as pessoas já conhecem, é muito mais fácil e a história flui muito melhor”, afirma Lídia. Entretanto, é importante ressaltar que mesmo partindo de um paratexto familiar ao fã, as fanfics devem manter alguns pilares da trama, caso contrário, a história não estabelece diálogo com o cânone. Como ressalta Jenkins (2012, p. 20)

Uma boa história de fã referencia eventos-chave ou pedaços de diálogo como evidência para suportar sua interpretação particular dos motivos e ações dos personagens. Detalhes secundários são usados para sugerir que a história poderia ter ocorrido de forma plausível no mundo fictício mostrado no original. É certo que existem histórias ruins que não se aprofundam nos personagens ou caem em interpretações  banais,  mas  a  boa  fan  fiction  mostra  um  profundo  respeito  pelo  que gerou a fagulha na imaginação ou curiosidade do escritor-fã. 

Atualmente com perfil ativo na plataforma Spirit Fanfics e Histórias, a primeira fanfic produzida por Lídia partiu de uma ideia coletiva. “Conversando com amigas, tivemos uma ideia coletiva para uma fanfic Limantha. Me arrisquei e mergulhei nisso!”. O shipp Limantha, acrônimo das personagens Lica (Manoela Aliperti) e Samantha (Giovanna Grigio), integra o universo ficcional de Malhação: Viva a Diferença (TV Globo, 2017-2018) e de As Five (Globoplay, 2020 – atual). Produzido pelo Globoplay o spin-off As Five (2020-atual) dá continuidade a temporada da telenovela, criada por Cao Hamburger. Na trama Keyla (Gabriela Medvedovski), Ellen (Heslaine Vieira), Lica (Manoela Aliperti),Tina (Ana Hikari) e Benê (Daphne Bozaski) se reencontram após seis anos sem se verem. As personagens estão no começo da vida adulta e enfrentam conflitos comuns à Geração Z. Entre os temas abordados na série estão o feminismo, o preconceito, a xenofobia, o capacitismo e a maternidade solo. 

Imagem 1: Rede Semântica gerada a partir do código Informação Geral (ID)

As fanfics de Lídia são atualizadas regularmente e somam mais de 3 mil acessos. De acordo com Jenkins (2012, p.14), “A fan fiction revitaliza esse impulso criativo, operando em um mundo onde muitas  pessoas  diferentes  podem  recontar  a  mesma  história  e,  no  processo,  expandir o alcance de interpretações potenciais do material fonte”.  O processo criativo de Lídia  reforça esta aprendizagem informal presente nos fandoms, em os fãs trocam informações e compartilham habilidades. A autora também usa constantemente outros recursos para ampliar o seu diálogo com os leitores como, por exemplo, a seção Notas do Autor, do Spirit Fanfics e Histórias, e o seu perfil pessoal no Twitter, o @idmli. 

A partir deste contexto, esta análise tem o objetivo de discutir a inter-relação entre a competência midiática e as práticas da cultura de fãs no Brasil, especificamente na criação de fanfics direcionadas para o público jovem. Para a reflexão desta questão iremos adotar a metodologia proposta por Ferrés e Piscitelli (2015) para avaliar e promover o desenvolvimento da competência midiática na cultura participativa. Os autores definiram seis dimensões (linguagem, ideologia e valores, estética, tecnologia, processos de interação e de produção e difusão) a partir das quais os indicadores são elaborados. Apesar de todas as dimensões estarem em operação na leitura crítica e criativa de Lídia,  nesta análise iremos focar em três. São elas: Linguagem, Ideologia e Valores, e Estética. Inicialmente foram aplicados questionários on-line com questões discursivas pré-determinadas e direcionadas aos fãs que produzem fanfics sobre a série As Five. As respostas foram sistematizadas a partir do software de análise qualitativa de dados Atlas.it.

No software codificamos os trechos das entrevistas em que as dimensões foram observadas. Em outras palavras, foram criados três códigos no software, são eles: Dimensão Linguagem (DL), Dimensão Ideologia e Valores (DIV) e Dimensão Estética (DE). Também configuramos o código Informação Geral (ID), para reunirmos informações tais como nome, e-mail, perfil em redes sociais e plataformas digitais dos fãs. Num segundo momento, após o agrupamento dos conteúdos a partir dos códigos DL, DIV, DE E ID criamos uma rede semântica para cada dimensão.

Imagem 2: Rede Semântica gerada a partir do código Dimensão Linguagem (DL)

De acordo com Ferrés e Piscitelli (2015) além da capacidade de interpretar, avaliar, analisar, compreender e correlacionar diversos códigos, formatos e gêneros midiáticos, a dimensão Linguagem está relacionada com a habilidade de produzir e ressignificar conteúdos a partir de diversos modos de representação e produção de sentido.  Jenkins (2012) pontua que a fanfic envolve dois modos de leitura: a crítica e a criativa. Na leitura crítica o fã avalia a obra como um produto estético, analisando sistematicamente cada elemento e nuance da trama. Na leitura criativa o fã tem a capacidade de reescrever pontos do cânone que não satisfazem o seu interesse, ampliando e ressignificando o universo ficcional. Desta forma, a Linguagem está presente na leitura crítica e criativa realizada por Lídia. Estes modos de leitura ficam nítidos quando a fã explica o que aprendeu ao desenvolver as tramas. “Aprendi a olhar mais a fundo os personagens, aprendi suas facetas, seu jeito em universos diversos. Aprendi a ler coordenadas, a montar diálogos longos, a relacionar eventos, a descrever ambientes com mais precisão. Aprendi a narrar em terceira pessoa, algo que nunca fiz. Aprendi a criar um mistério e um romance”, explica. Isto é, a elaboração das fanfics criadas pela fã abrangem tanto um profundo entendimento das nuances no cânone de Cao Hamburguer quanto o domínio de habilidades técnicas de escrita e narrativa. 

As histórias publicadas por Lídia geralmente partem das seguintes motivações: contradições e sementes. De acordo com Jenkins (2012, p. 17) as contradições se referem a “dois ou mais elementos na narrativa (intencionais ou não) sugerindo possibilidades alternativas para os personagens”. Já as sementes abrangem “pedaços de informação introduzidos na narrativa para indicar um mundo maior que não é completamente desenvolvido na própria história” (JENKINS, 2012, p. 16). Ambas as motivações podem ser observadas, por exemplo, em Dói Sem Tanto, que aprofunda não só o relacionamento de Lica e Samantha, mas a amizade de Samantha e Guto. Isto é, a fã amplia os desdobramentos narrativos do casal, explorando outras ambientações, gêneros narrativos e temas e também detalha, trazendo mais profundidade e novas nuances, a relação de Samantha com Guto. 

A dimensão Linguagem também está presente na forma como a fã usa os recursos da arquitetura operacional do Spirit Fanfics e Histórias, reconhecendo as especificidades de cada elemento. Como, por exemplo, o uso das indexações em cada trama, que além de otimizarem o motor de busca do site a localizar as fanfics, direcionam melhor os leitores a partir da delimitação de personagens e shipps que compõem a história (Blica, Ellen, Ellito, Gumantha, Lica, Limantha, Samantha, etc.), gêneros narrativos (drama / tragédia, policial, romântico / shoujo, universo alternativo, etc.), faixa etária e avisos (álcool, bissexualidade, drogas, heterossexualidade, homossexualidade, insinuação de sexo, linguagem imprópria, suicídio, etc). Desta forma, a fã não só identifica as características dos elementos, como as adequa com base na arquitetura operacional da plataforma. As fanfics produzidas por Lídia são compostas por uma capa, a imagem faz alusão a proposta central da trama e facilita no processo de familiarização dos leitores com o conteúdo. Como, por exemplo, a capa da fanfic Coração Carnaval, que mostra as atrizes Heslaine Vieira (Ellen) e Manoela Aliperti (Lica) em em contexto carnavalesco, indo ao encontro da ambientação da história. 

Imagem 3 – A capa da fanfic Coração Carnaval reforça a temática explorada pela fã. 

Fonte: Spirit Fanfics e Histórias (2021) 

De acordo com Ferrés e Piscitelli (2015) a dimensão Ideologia e Valores ressalta a capacidade de avaliar, analisar, reconhecer os conteúdos considerando seus distintos recortes culturais e sociais, identificando e questionando os estereótipos (de gênero, raça, etnia, classe social, religião, etc.) e os mecanismos de manipulação. Além da habilidade de elaborar e modificar os conteúdos midiáticos, se comprometendo com a cidadania, a fim de transmitir valores e colaborar para a melhoria da sociedade. Podemos observar a dimensão principalmente nas fanfics produzidas por Lídia que expandem as questões relacionadas à população LGBTQIA+. Como detalha a fã, “As duas principais fanfics têm como personagens principais casais formados por duas mulheres. Em “Dói Sem Tanto”, o foco está em Limantha (Lica e Samantha), suas vontades, impulsos, erros e lutas… Já em “Coração Carnaval”, o casal principal é Ellica (Ellen e Lica) e ali exploro mais as descobertas sexuais e afetivas de Ellen, seus medos e inseguranças por entender que gosta de Lica”. Neste contexto, Lídia não só reforça a representatividade, mas aborda, muitas vezes, questões mais densas dos que as apresentadas no cânone, tais como os conflitos sociais no processo da descoberta da orientação sexual. Ao ampliar as reflexões da trama, a fã acaba, mesmo que indiretamente, estabelecendo uma aproximação mais forte com os seus leitores, que se identificam com as situações retratadas na fanfic

Imagem 4: Rede Semântica gerada a partir do código Dimensão Ideologia e Valores (DIV)

As histórias produzidas pela fã também têm como objetivo quebrar estereótipos ligados aos casais sáficos e apresentar um viés educativo, ligado à conscientização e a educação sexual. Segundo Lídia, “Em ambas [as fanfics], adiciono (no momento, adicionarei, pois ainda não está nos capítulos publicados) um assunto de muita relevância que é sobre os cuidados no sexo entre pessoas com vulva, como se prevenir e porque não falamos sobre isso. Acredito que isso é importante principalmente para as meninas lésbicas e multi que leem essas fanfics e caem no conto dos “hots”, acreditando que aquilo retrata a realidade.” Isto é, a produção criativa da fã vai além do preenchimento de lacunas do paratexto, mas cumpre, dentro dos parâmetros da fanfic, uma função pedagógica. 

Imagem 5: Rede Semântica gerada a partir do código Dimensão Estética (DE)

Segundo Ferrés e Piscitelli (2015) a dimensão Estética se refere à capacidade de relacionar e identificar referências intertextuais, explorando novas camadas interpretativas, e também de produzir conteúdos pautados na criatividade e na originalidade. A dimensão proposta pelos autores está em operação no modo como Lídia  estabelece estratégias criativas a partir do gênero da fanfic, reconhecendo as demandas e especificidades de cada formato. “Dói Sem Tanto”, por se tratar de uma trama de investigação, é extremamente planejada: tenho linha do tempo, lugares reais, trajetos, uma aba com os envolvimentos dos personagens principais… E o mais importante, planejamento de capítulo. O que eu quero revelar e desenvolver da história em tal capítulo, isso é importantíssimo para eu me organizar e não me perder, afinal, posso estar escrevendo o capítulo 5, mas o 10 já está planejado. Já a minha outra, “Coração Carnaval”, é uma história mais curta, mais leve, sobre amizade, romance, festa, férias etc. Por isso, por mais que eu anote pontos chaves que eu quero que aconteçam em tal capítulo, a escrita é muito mais livre e espontânea, não há tanto compromisso com fatos e tempo como há na primeira.”. 

As tramas produzidas pela fã apresentam diversas referências intertextuais, abrangendo desde o título de uma fanfic como, por exemplo, Coração Carnaval, que é uma canção homônima do duo Anavitória, quanto trechos, ao longos dos capítulos que fazem alusão a citações de livros, filmes, etc. Ao transpor uma obra em que o cânone parte da linguagem audiovisual, Lídia estabelece pontos chaves do paratexto que irão nortear a expansão e a ressignificação de sua história. “Não podemos ignorar o modo como os personagens falam e agem, de modo que os diálogos saem muito mais informais do que a narração (principalmente se for em terceira pessoa) e as manias e gestos devem ser descritas sempre. Eu geralmente imagino os atores em cena, na cena que eu escrevi, portanto descrevo muito as ações e até pequenos gestos deles.”. 

Neste contexto, as fanfics criadas por Lídia abordam temas e discussões que seriam, de certo modo, inviáveis no mercado comercial, estimulando não só a leitura crítica do fã/autor, mas propiciando aos leitores acesso a tramas que se distanciam dos recursos convencionais. 

Referências


FERRÉS, J; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, v. 9, n, 1, p. 1-16, 2015. Disponível em: <https://goo.gl/3EQnc6>. Acesso em: 11 dez.2021.

JAMISON, A. Fic – Por que a fanfiction está dominando o mundo. São Paulo: Rocco, 2017.

JENKINS, H.. Lendo criticamente e lendo criativamente. Matrizes, v.9, n. 1, p. 11-24, 2012. Disponível em: <https://bit.ly/2JYoU30>. Acesso em: 11 dez. 2021.

LIDIA. A compreensão crítica e a produção criativa no desenvolvimento de fanfics. Entrevista concedida a Daiana Sigiliano. Observatório da Qualidade no Audiovisual, Juiz de Fora, 2021.

Informamos que a quarta fase deste projeto (CAAE 51662921.4.0000.5147) foi submetida e está de acordo com os princípios éticos norteadores da ética em pesquisa estabelecido na Res. 466/12 CNS e com a Norma Operacional Nº 001/2013 CNS. Data prevista para o término da pesquisa: março de 2022.

A divulgação dos questionários direcionados aos autores de fanfics sobre Limantha foi realizada com a ajuda do Portal As Five (https://linktr.ee/portalasfive). 

Observatório da Qualidade no Audiovisual

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