O documentário “À sombra de um delírio verde” (2011), dirigido por An Baccaert, Cristiano Navarro e Nicola Mu, traz ao público a região do Mato Grosso do Sul, fronteira com o Paraguai, onde a mais populosa etnia indígena se concentra no Brasil atual. Com esse cenário, o filme evidencia a situação que mais de 40 mil nativos Guarani Kaiowá vivem diariamente com o avanço e, consequente, invasão da monocultura de cana-de-açúcar sobre suas terras, mesmo já reconhecidas pelo Estado como propriedades indígenas.
Dessa forma, a negligência das autoridades, a violência com aval do Estado, o roubo gradativo do território original para o agronegócio, o trabalho desumano nos canaviais, assassinatos constantes de lideranças indígenas e o índice de suicídios avançando a cada ano, são partes da luta que o povo Guarani Kaiowá enfrenta para sobreviver em seu território atual no Mato Grosso do Sul. “À sombra de um delírio verde” explicita, então, a situação indígena no Brasil, e como esse povo enfrenta as consequências do avanço do “ouro verde” (cana-de-açúcar) em sua região.
Xs diretorxs criam uma trajetória de recuperação da memória no filme, através da história, imagens de arquivos de programas de televisão e relatos falados da comunidade indígena, para nortear o espectador sobre o cenário atual dos Guarani Kaiowá, logo, o resultado é pedagógico e direto. O filme nega floreios e propõe um resultado objetivo e palpável ao entendimento do público geral. “À sombra de um delírio verde” expõe por meio de uma retrospectiva histórica o avanço do biocombustível, com a montagem de imagens do discurso do presidente Lula(2007) e de programas de televisão antigos exaltando o avanço da produção e comercialização do Etanol. Com a narração de Fabiana Cozza, explicita o contexto econômico do país naquele momento, até chegar nos depoimentos da comunidade atingida, que denuncia ataques, invasões, exploração nos canaviais e perseguições às lideranças, personificando a luta desse povo.
O aumenta da demanda do Etanol, a partir do impulso e investimentos direto na indústria dos biocombustíveis em 2007, propiciou ao Mato Grosso do Sul como um dos principais polos da monocultura de cana-de-açúcar no Brasil, pelas condições de solo e clima ideais. Logo no início do documentário ouvimos a fala do presidente da Federação da Agricultura MGS, Eduardo Corrêa Riedel, que afirma “[…] nós estamos com projetos em andamento de mais 40 usinas, isso vai levar até 2012, que nós tenhamos algo, em torno de 900 mil a um milhão de hectares de cana-de-açúcar aqui no Mato Grosso do Sul.”, na mesma fala afirma que em 2011, havia em torno de 170 mil hectares de monocultura de cana. Fica evidente a contínua expansão da monocultura e do agronegócio na região, mas também que os limites entre terras destinadas à indústria e terras de propriedade indígena não são respeitados pelos fazendeiros e latifundiários, visto as constantes violações dos direitos da terra dos Guarani Kaiowá, que vivem hoje em menos que 1% de seu território original.
Hoje, o Mato Grosso do Sul tem a maior concentração de propriedades privadas rurais do país, representando 92% do seu território. Mas, o que nos é mostrado são as consecutivas invasões ao território pertencentes aos Guarani Kaiowá, pelo processo de grilagem até a expulsão e ameaças por milícias armadas, como é mostrado na cena final do documentário Martírio (2016), em que um grupo que havia ocupado a sede da fazenda é atacado por agentes de segurança armados. Tudo é gravado pelos próprios indígenas no momento da ação, com a filmadora que foi deixada para eles por intermédio da produção.
Dessa forma, o cinema aparece como denúncia. As imagens dessa invasão de milicianos armados, exposta no filme Martírio, aconteceu em uma ocupação no interior do Mato Grosso do Sul, e demonstra uma urgência de trazer ao cinema essa contra-narrativa, por meio da participação direta da população indígena no cinema – foi através dessa proposta, que surge, em 1986, o projeto precursor na área de produção audiovisual indígena no Brasil, o Vídeo na Aldeias. Por meio de recursos audiovisuais, povos indígenas transparece sua luta e fortalece suas identidades e seus patrimônios territoriais e culturais.
Historicamente, a partir de meados de 1910, a aparição de indígenas começa a se manifestar no cinema brasileiro. Filmes como “Os Sertões de Mato Grosso” (1912), dirigido por Thomaz Reis, e “Expedição Roosevelt” (1914), dirigido pelo marechal Cândido Rondon e o ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt, trazem uma exploração empírica de uma região até então não tratada, como a Amazônia e as entranhas do Mato Grosso, e desenvolve a narrativa dos povos indígenas que habitam nessas regiões como a temática secundária dos filmes. Ainda nesse período, marcado pelo positivismo no Brasil, o foco principal era o avanço científico da pesquisa pela fauna e flora brasileira. O cinema é como um elemento que em diversificados níveis, reflete a realidade através da narrativa que ressalta alguns aspectos da existência e escondem outros, devido ao uso de uma linguagem que revela a forma de como um realizador e seu grupo social abordam temas pertinentes de sua época (FERRO, 1993). Neste período, o imaginário popular a respeito dos povos indígenas foram sendo difundidos pelo cinema. Esse cinema produzido por homens brancos em sua totalidade, colocou os povos nativos em lugar de alteridade, o lugar do outro, que demonstrava seus costumes contrários ao mundo urbano e “civilizado”, colocando-os como selvagens e bárbaros. Noções essas, vinculadas a imagens estereotipadas e estanques que continuam, lamentavelmente, a fundamentar o conhecimento sobre o que é ser indígena na atualidade.
Durante o século XX, a imagem dos indígenas foi produzida por não-indígenas, em sua maioria a serviço do Estado ou do capital, pela grande mídia. As consequências foram produções e difusão de imagens fantasiosas e depravantes de um nativo imaginário conforme interesse dos grupos que detém a hegemonia do discurso e do poder. Dessa forma, o cinema indígena vem expressando representações que rompem com as barreiras negativas e estereotipadas do imaginário popular a respeito da identidade indígena. Assim, “À sombra de um delírio verde”, mesmo fazendo parte de um cinema indigenista (filmes produzidos por antropólogos e indigenistas), explora e expõe a contra-narrativa que é ignorada pelo cinema hegemônico, dando voz à comunidade indígena Guarani Kaiowá e levando a urgência de sua luta para a denúncia nas telas de cinema, voltando os olhares à sujeitos e comunidades invisibilizadas e marginalizadas.
Por Gabriel Telles
Referências
CUNHA, L. Cinema e Imaginação: a imagem do índio no cinema brasileiro dos anos 70. São Paulo. USP/SP, 2000. Disponível em <https://bdpi.usp.br/item/001072729>
NUNES, C; SILVA, R; SANTOS, J. Cinema indígena: de objeto a sujeito da produção cinematográfica no Brasil. 2014. Disponível em <https://journals.openedition.org/polis/10086>
PUCCI, R. A representação do índio brasileiro na interface pós-moderna de cinema e TV. Paraná. UTP. 2004. Disponível em <http://www.periodicos.usp.br/significacao/article/download/65597/68208>
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