Observatório da Qualidade no Audiovisual

Boca a Boca: análise dos processos de criação

Numa cidadezinha rural do interior, um vírus misterioso transmitido pela saliva é identificado como o responsável por uma doença que afeta os jovens, causando inicialmente manchas estranhas na pele e, em quadros mais agravados, estados vegetativos ou até mesmo a morte. O vírus irrompe na comunidade de Progresso como um catalisador para conflitos e mudanças, trazendo à tona o embate entre gerações, que é um dos principais temas de Boca a Boca, série da Netflix lançada em julho de 2020 com uma temporada de seis episódios.

Criada por Esmir Filho, também showrunner da produção, a obra apresenta uma continuidade temática e estética com relação a sua filmografia, como o curta-metragem Saliva (2007) e o longa Os famosos e o duende da morte (2009), que trazem paletas de cores semelhantes e a perspectiva de adolescentes em suas descobertas sobre sexualidade, identidade, relação com a internet e transição para a vida adulta [Figura 0]. Esmir relata que a série busca discutir “o Brasil dentro de uma fábula do afeto. O vírus da série é o do conservadorismo, que cala o corpo dos jovens, que anula a sexualidade” (Prisco, 2020, On-line). Com uma abordagem alegórica, questões sociais como a raça, a sexualidade e as relações de poder são pontos centrais da trama, que trabalha muitas dicotomias a partir da contraposição entre os adolescentes e a geração de seus pais.

Como protagonistas temos Fran, Chico e Alex, jovens da cidade que tentam entender o que está acontecendo e, para isso, criam um “mapa do beijo”, inter-relacionando todos que se beijaram para identificar aqueles em risco potencial. Bel, amiga dos personagens, foi a primeira a apresentar sintomas da doença e piora abruptamente, sendo levada para o hospital e colocada em quarentena. Diante disso, fofocas e teorias circulam rapidamente pelas redes sociais e alguns pais se unem para evitar que a doença se espalhe. Entretanto a tentativa de controle exacerbado,  e suas posições conservadoras, os tornam antagonistas na missão dos jovens em ajudar sua amiga Bel e encontrar uma cura para a doença.

Como pode-se perceber, inclusive pela data de estreia da série, há muitos paralelos entre o enredo de Boca a Boca e o cenário trazido pela pandemia de COVID-19 ao Brasil. A necessidade de isolamento social, os perigos do contato, o uso de máscaras e álcool em gel e a ansiedade e temor da população frente a uma doença desconhecida são apenas  alguns exemplos. Entretanto, a partir do próprio texto e das entrevistas e materiais de divulgação em torno da obra, fica evidente que as relações construídas entre o universo ficcional e o momento histórico do país em que ela foi lançada foram tecidas posteriormente de forma a aproveitar a oportunidade do tema para trazer atenção ao lançamento.

A série trata de seus temas a partir de dualidades e contrastes, que são reforçados também na visualidade e que ajudam a criar tensões recorrentes. Há sempre dois pontos de vista opostos em diálogo, seja entre dois personagens ou entre estes e o ambiente. Algumas cenas criam essas demarcações de forma muito explícita, como a do enterro de Bel e a dos pais no hospital [Figura 1]. Tal composição é traço significativo de Boca a Boca, como será aprofundado a seguir, trazendo polarização e a distância entre as gerações de pais e filhos para o primeiro plano da trama. O arcaico e o tecnológico, o urbano e o rural, o científico e o místico são pares que exemplificam as forças motrizes da trama, personificadas nos personagens cujos conflitos funcionam como comentários sobre a sociedade brasileira atual. 

A composição visual de uma Progresso retrógrada 

Localizada numa cidade do interior, rural e pacata, a ambientação de Boca a Boca parece ir na contramão do que se esperaria de uma série voltada a um público jovem, que faz forte uso das telas, de referências globalizadas e das ideias de instantaneidade e simultaneidade características do ambiente virtual. Entretanto, a concepção de Progresso foi feita justamente de modo a criar um choque entre as identidades e comportamentos dos adolescentes com um meio agrário e tradicional [Figura 2]. Essas características de cidade do interior são intensificadas na composição dos cenários para trazer à tona, na própria visualidade, essa sensação de que os jovens são indivíduos forasteiros ou intrusos numa dinâmica social que já funciona da mesma forma há anos.

A Escola Modelo, onde estudam os protagonistas, por exemplo,  traz uma arquitetura colonial, com paredes de tijolos vermelhos, carteiras de madeira e exige que seus alunos usem um uniforme com características de vestimentas militares. Ao mesmo tempo, os estudantes estão constantemente usando seus celulares, postando em redes sociais e ouvindo k-pop no intervalo. Desse conflito de gerações, surge a necessidade de se vigiar e controlar os estudantes, a partir da criação de regras e de uma postura rigorosa, sintetizadas na personagem da diretora Guiomar (Denise Fraga), que possui semblante sério, tom protocolar e postura autoritária.

Como aponta Mittell (2015), roteiristas, diretores, figurinistas e atores, dentre outros profissionais, colaboram na criação e desenvolvimento dos diferentes personagens. No caso de um ator, mais especificamente, além de sua contribuição criativa para o papel em questão, há outros elementos que vão impactar na percepção que os telespectadores terão de determinado personagem. Esses elementos, inclusive, podem até mesmo extrapolar a narrativa em questão, esbarrando no repertório cultural do público, como outros papéis realizados por determinado profissional ou até mesmo fatos de sua vida pessoal do elenco. Assim, ao escalar Denise Fraga para o papel da diretora Guiomar, há uma espécie de subversão na expectativa do público, que habitualmente associa a atriz a papéis mais leves ou cômicos. O fato de ela se apresentar de maneira austera e séria, traz mais uma camada de intensidade ao papel e deixa o telespectador interagente mais atento às nuances que isso vincula à narrativa [Figura 2].

O próprio nome da escola – Modelo – assim como o da cidade – Progresso – já representam pistas sobre a atmosfera que envolve a série. De fato, a ideia de uma composição alegórica é a base da criação de Progresso, município fictício que tenta representar um microcosmo do Brasil, no qual a economia gira em torno da agropecuária, em que há forte presença religiosa – sobretudo, católica – e onde a presença da internet traz exposição e velocidade às relações sociais (Carmelo, 2020). A contraposição entre a juventude tecnológica e o ambiente rural, mais que salientar diferenças, reforça a existência de um ambiente novo que mistura características de ambos. Dessa forma, a alegoria ganha um contorno mais amplo, envolvendo também a doença que surge na cidade. 

No universo ficcional, ela é, objetivamente, causada por um vírus que afeta a saúde dos jovens a partir do contato íntimo. Porém, em um ambiente rural e com heranças coloniais, os jovens representam uma força de ruptura espontânea na comunidade. Apenas por existirem e terem seus gostos e identidades próprios, entram em conflito com as regras – explícitas e implícitas – da cidade, perpetuadas pelas gerações anteriores. Assim, de maneira simbólica, a própria juventude é encarada como uma doença que afeta aquele corpo social, corrompendo as famílias – que são comparadas a células no próprio texto da série –  e desfazendo os vínculos existentes. Essa visão negativa sobre o comportamento dos adolescentes é trazida a partir das gerações mais velhas, representadas pelos pais dos protagonistas e de seus amigos, que personificam a onda de conservadorismo surgida no Brasil na última década, e que possibilitam tratar de questões como racismo e homofobia dentro da obra. 

De fato, apesar das semelhanças com o cenário instaurado no país a partir da COVID-19, a doença da série foi inspirada no contexto que surgiu em torno da AIDS. Esmir Filho conta que a ideia para o projeto surgiu dois anos antes da pandemia do coronavírus e que, no momento da criação, pensou muito na epidemia de HIV, nos anos 1980, que trouxe um cenário social de preconceito contra certos tipos de corpos (Prisco, 2020). Em Boca a Boca, há inclusive uma cena bastante representativa dessas reflexões, em que Chico, que estava tendo um romance homoafetivo, ouve de seu pai que ele merecia ter aquela doença (em referência à doença do beijo). Ele, então, olhando diretamente para a câmera, responde que não está doente. Essa fala, ao ser direcionada também ao público a partir do posicionamento da câmera, ganha outra camada, referindo-se à época em que se encarava a homossexualidade como doença, validada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que só retirou em 1990 o termo de sua Classificação Internacional de Doenças (Welle, 2020).

Além das ruas da cidade e da escola, outros ambientes também reforçam a atmosfera conservadora, que coloca o próprio meio como uma espécie de antagonista simbólico dos adolescentes, como notado na casa de Chico e na fazenda de Alex. No primeiro caso, há um contraste entre a persona do jovem, que tem cabelos longos e azuis, unhas pintadas e veio de São Paulo para viver no interior; com a de seu pai, de valores tradicionais e católico fervoroso. A casa tem diferentes elementos sacros, como imagens e quadros religiosos, passagens de salmos emolduradas, além de ser sempre tomada com a incidência de luzes que entram pela janela, numa composição que remete às próprias imagens bíblicas, de uma luz sagrada de presença divina. Porém, essa luz é forte e angular, sendo um pouco invasiva e criando a ideia de vigilância, de um Deus que tudo sabe e tudo vê [Figura 3]. Quando o pai de Chico descobre sobre sua sexualidade e o confronta, essa luz é ressaltada, e juntamente com a posição dos atores em cena, trouxe à visualidade, de uma forma sugestiva, a sensação de julgamento moral que pairava entre os personagens. O figurino de Chico, com uniforme de aspecto militar, reforça também na visualidade, essa tentativa de Progresso em controlar seu corpo e identidade, que florescem independentemente disso.

Já no caso de Alex, recorreu-se a outros tipos de elementos. Ao invés de uma opressão religiosa, há muitas referências à pecuária e a criação de gado, ramo no qual sua família fez fortuna. Tendo crescido na fazenda e cercado por animais, Alex passa a identificar-se como vegano. Isso o coloca em confronto direto com seu pai, que personifica o empreendedor sem limites morais, éticos ou ecológicos do agronegócio, e também com sua mãe, que relativiza suas razões e insiste para que o filho inclua proteínas animais em sua dieta [Figura 4]. Além de carcaças de cabeças de bois espalhadas pela casa e outras peças de decoração que aludem ao tema, as cenas de refeições à mesa sintetizam de maneira efetiva a oposição do personagem com o ambiente onde vive. 

Externalizar os sentimentos internos de um personagem sempre é um desafio em produções audiovisuais, visto que a câmera é uma instância narradora baseada na imagem, diferentemente da literatura, por exemplo, em que há uma narração verbal que conduz a narrativa (Sijll, 2005). Assim, as locações e cenários ganham grande importância, pois são recursos disponíveis em praticamente todos os planos. O que Boca a Boca faz ao localizar sua história em Progresso, é aproveitar ao máximo as ambientações para frisar o desconforto, a falta de pertencimento e os conflitos presentes na vida dos protagonistas. Seja num lar religioso, numa fazenda de criação de gado ou nas ruas de pedra com construções de arquitetura colonial, ao tomarmos contato com esses personagens, fica cada vez mais evidente as discrepâncias entre suas identidades e o local onde vivem.

Roxo, telas e juventude

Desde o início, é evidente a intenção de trazer à Boca a Boca uma história com estética atual, que retrata hábitos e comportamentos de jovens que vivem em centros urbanos, conectados por redes sociais e integrados a uma cultura globalizada. Antes de tratar sobre uma doença, ter aspectos de ficção científica ou suspense, e um mistério a ser solucionado, Boca a Boca é uma série voltada ao público jovem. Isso resulta numa proposta estética que trabalha imagens estilizadas, com paleta de cores específica e que incorpora a linguagem da internet e das redes sociais em seu storytelling. 

As cores azul, rosa e roxo chamam a atenção em muitas das cenas, em especial aquelas de festa, em que os jovens se beijam e acontece o contágio da doença [Figura 5]. Tais cenas remetem à atmosfera de algumas séries populares voltadas ao público jovem, como Euphoria (HBO) ou Skins (MTV), que capturam aspectos de experimentação da juventude, como o início de uma vida noturna, a liberdade sexual e o consumo de drogas. Percebe-se, aqui, o contraponto da ambientação construída em Progresso, com a efervescência da vida noturna e hábitos dos adolescentes. Essa estética com luzes psicodélicas, maquiagens estilizadas e uso de glitter também foi tema de um ensaio fotográfico usado para divulgação da série.

Esmir Filho explica que o azul e o rosa representam dualidades que marcam a trama – o progresso contra o desconhecido, a sede contra a colônia, os pais contra os jovens -, e no esmaecer das fronteiras surge o roxo, resultado da combinação das duas cores (Carmelo, 2020). A ideia era de que azul e rosa estivessem sempre juntos e se misturando, numa metáfora para a coexistência do feminino e do masculino nas identidades e também das barreiras que se quebram na comunidade para dar espaço a todos que vivem ali. O tom azulado da luz negra usado na ala de isolamento dos pacientes no hospital também traz uma atmosfera futurista e tecnológica, mas ao mesmo tempo ameaçadora, visto que a doença parece afetar apenas os jovens. Ou seja, a paleta de cores fica associada a uma manifestação da jovialidade, dos prazeres do corpo, além das cenas festa e sua amarração com o surgimento da doença.

Para além da paleta de cores, o uso de diferentes formatos de vídeo (horizontal e vertical), com grafismos que simulam a interface das redes sociais, e a recorrência do uso de smartphones e computadores pelos personagens também se configuram como elementos que ajudam a trazer esse apelo a um público mais jovem. Essa decisão não foi meramente estética, ela cumpre a função narrativa de ser um contraponto a toda atmosfera rural e conservadora dos cenários. É na montagem, que propõe sequências de ritmo frenético e cortes abruptos, que se reforça as características e aspectos relacionados à juventude, com exceção das cenas de festa, que também trazem ao pró-fílmico esses elementos. Apesar das casas coloniais, dos uniformes militares e cenários rurais, a inserção das capturas de telas, lives do Instagram e comentários feitos em tempo real dinamizam a narrativa e atualizam o storytelling para a realidade dos jovens de hoje. 

Uma cena que captura as ideias de simultaneidade e conectividade das quais a série faz uso é a do suicídio transmitido em live de um dos estudantes da escola [Figura 6]. Ele, no hospital, inicia uma transmissão ao vivo através de seu celular. Vemos o vídeo em formato vertical com as inserções típicas do Instagram, como número de espectadores, botões de curtir e feed de comentários. Durante a live, vemos que Chico entrou na transmissão pelo feed de comentários. Em seguida, vemos o personagem em seu quarto, com celular na mão, acompanhando o que acontecia. Conforme a cena avança, vemos diferentes estudantes fazendo comentários como “Ele vai se jogar da janela?”, “Pula, man” e “Sai da janela”. Os comentários acrescentam tensão dramática à cena, fazendo com que os telespectadores antecipem o que acontecerá em seguida. Além disso, cria um dispositivo interessante para representar tal acontecimento como algo partilhado por diversas pessoas a partir de uma experiência virtual simultânea. 

Outro momento que traz tais aspectos na montagem é a de quando Chico descobre que o perfil de Manu é falso. Há uma sequência com diversas capturas de telas estáticas de seu perfil em uma rede social. Com uma trilha de música eletrônica, faz-se uma sucessão bastante rápida de diversas fotos postadas por Manu, de modo a ressaltar que seu rosto sempre permanece com o mesmo semblante em todas, o que leva Chico a perceber que tratam-se de montagens. Com isso, além da incorporação de diferentes telas e redes sociais, há uso de uma visão subjetiva, que alinha nosso olhar com o que o personagem estava assistindo durante sua investigação na internet. 

Como dito antes, o choque entre o interior rural e a juventude conectada não mistura dois elementos imiscíveis, mas os combina para criar um ambiente novo – assim como azul e rosa se misturam para formar o roxo. Neste caso, o próprio título da série, Boca a boca, para além de aludir ao vírus e a forma de contágio da doença, reflete a proximidade presente em cidades do interior nas quais os moradores conhecem uns aos outros e comentam sobre suas famílias e os acontecimentos que movimentam a comunidade, numa transmissão de informações que acontece de maneira orgânica e muitas vezes invasiva. Esse aspecto foi também explorado na narrativa, a partir da repercussão dos acontecimentos nas redes sociais, incluindo situações de desinformação e irresponsabilidade.

A ciência e o imponderável em Boca a Boca

Outra dicotomia presente na série é entre a ciência e tudo aquilo que escapa à ela. Isso se faz presente já nos gêneros com os quais a obra flerta, uma vez que recorre tanto a aspectos de ficção científica quanto a elementos do horror e do fantástico. Com relação à ficção científica, temos o uso das cores neon e maquiagens fluorescentes para criar a aparência de uma doença misteriosa causada por um vírus desconhecido. As cenas de quarentena dos contaminados no hospital tomadas em luz negra, com muitas telas de monitoramento cardíaco e os bipes das máquinas também reforçavam uma atmosfera distópica e com ar futurista. Além disso, mais ao final da temporada, quando conhecemos as instalações da aldeia – referida pelos moradores de Progresso como Seita – vemos também um laboratório repleto de vidrarias e líquidos coloridos, reiterando esse diálogo da série com o gênero [Figura 8].

 

Já os elementos do horror e do fantástico foram utilizados em cenas mais subjetivas, como as dos sintomas trazidos pela doença que faziam com que os personagens alucinassem e entrassem em contato com seu maior medo. A primeira delas acontece com Fran, que se vê num bosque de tons rosados onde venta muito e eventualmente cai dentro de uma cova no chão. Inicialmente a cena aparece de forma descontextualizada, de forma que pode ser associada a um sonho da personagem. Posteriormente, recebemos a informação de que tal cena era na verdade uma alucinação causada pela doença e que representava seu maior medo. Seu sentido relaciona-se ao trauma que traz desde sua infância, quando perdeu sua irmã gêmea e, desde então, guarda certa inquietação sobre o ocorrido pensando que uma parte de si morreu e que poderia ser ela quem não estava mais ali viva com sua mãe. 

Num tom mais próximo do horror, temos a alucinação de Alex no episódio “Metamorfose”. Ao descobrir que seu pai estava fazendo experimentos genéticos no gado da fazenda, o jovem vai com uma câmera até o galpão onde ficam os animais. A cena é bastante escura e tomada, diegeticamente, pela própria câmera do personagem com flash ligado, de forma que temos uma visão em primeira pessoa mediada pela tela da câmera. O estilo da filmagem lembra o subgênero de filmes found footage, caracterizados por uma documentação feita pelos próprios personagens da narrativa dos acontecimentos narrados [Figura 09]. No galpão, Alex finalmente fica de frente às criaturas geradas pelos experimentos de seu pai: bois monstruosos e musculosos, com características de espécies ancestrais mais primitivas. Neste momento, Alex vê pelos crescendo em seus braços, que vão se tornando patas bovinas, num processo de metamorfose que eleva a tensão dramática da descoberta.

Em ambos os casos, de Fran e de Alex, não sabemos que tais imagens correspondem a delírios dos personagens causados pelo avançar da doença. Sendo assim, cria-se uma estrutura fantástica para a narrativa que suspende a explicação do que vemos em tela. De acordo com Todorov (2014), o fantástico propriamente dito se define por por um universo ficcional no qual existe um acontecimento que desafia a lógica racional, sendo possível uma explicação natural ou sobrenatural dos fatos. Essa hesitação em determinar a resposta é o cerne do gênero e pode ser vivida também por um personagem. Em sua forma pura, a narrativa fantástica terminará a história em aberto, com as duas opções permanecendo igualmente possíveis. O autor (ANO) também aponta para dois subgêneros derivados: o fantástico-maravilhoso e o fantástico-estranho, nos quais a obra termina por validar uma das duas explicações – respectivamente, a sobrenatural ou a natural. 

No caso de Boca a Boca, temos uma trama que incorpora elementos do fantástico-estranho, visto que, ao final, descobrimos que as sequências oníricas ou fantasiosas são na verdade alucinações provocadas pelo vírus que infectou os jovens – ou seja, temos uma explicação lógica sustentada pela medicina. Entretanto, como é característico do fantástico, essa confirmação só é dada ao final da série, mantendo a hesitação para o telespectador interagente. Ao final do quinto episódio, por exemplo, não podemos afirmar se Alex de fato se transformou em uma criatura, mas também não podemos descartar totalmente essa possibilidade. 

Vale ressaltar que os dois últimos episódios da série foram dirigidos por Juliana Rojas, cineasta brasileira conhecida por seu trabalho com o gênero do horror. Seu filme As Boas Maneiras (2017), por exemplo, traz paralelos diretos com Boca a Boca no uso de efeitos especiais para a metamorfose de Alex – já no caso do filme, há a presença de um lobisomem. Esmir Filho comenta que ambos assinaram seus respectivos episódios, mas também filmaram cenas uns dos outros em alguns casos, quando havia dois núcleos atuando ao mesmo tempo, e outras cenas mais complexas demandaram a presença dos dois diretores (Carmelo, 2020). 

O misticismo e o impalpável também se fazem presente na narrativa como contraponto às limitações da ciência e da medicina. A cura da doença não surge do hospital ou de medicamentos, mas de um processo terapêutico descoberto na aldeia (ou seita) com aplicação de um óleo e participação dos familiares e amigos dos doentes. De forma também simbólica, para combater a apatia e a dormência dos adolescentes, é preciso diálogo, afeto e conexão. Pais e filhos ficam juntos em piscinas de água quente, importantes para a manutenção da temperatura dos corpos, e é a partir de memórias felizes e palavras de carinho que os jovens despertam de volta à vida. 

A reflexão proposta é coerente com a ideia que deu origem à série. No caso da AIDS, a ciência e a medicina foram validadoras de um argumento enganoso que associava a homossexualidade a uma enfermidade, gerando preconceito e rejeição aos corpos infectados pelo HIV, além de criar uma associação injusta entre a homoafetividade e a doença. Com isso, Boca a Boca busca trazer à tona a importância do diálogo e do entendimento mútuo como forma de combater o conservadorismo, o racismo e a homofobia, além de se abrir a outras visões e entendimentos do mundo, mesmo que desafiem nossas concepções já formadas de mundo, seja a racionalidade, a tradição ou a religião. 

Parâmetros de qualidade audiovisual

A partir da análise de elementos da narrativa e da forma como são articulados pelos recursos cinematográficos, podemos acessar alguns parâmetros de qualidade da mensagem audiovisual. Esses parâmetros dizem respeito, para além da qualidade técnica da série e da construção de um universo ficcional coeso, à construção de sentidos que a obra provoca no telespectador interagente como, por exemplo, quais assuntos aborda e de qual maneira, como desenvolve as representações feitas e também aspectos relacionados à inovação e originalidade.

Tratando da questão da oportunidade, podemos destacar a intenção da Netflix em criar uma série brasileira voltada ao público jovem, bastante estilizada e seguindo o sucesso de produções como Euphoria, que quebrou recordes de acesso na plataforma de streaming da HBO e tornou-se fenômeno cultural a partir de sua trilha sonora, referências de maquiagem e abordagens de temas caros ao público adolescente, apesar de não ser necessariamente voltada à uma audiência dessa faixa etária.  Porém, mais que isso, o que chama atenção no que diz respeito à oportunidade foi a tentativa da Netflix em associar a série ao período pandêmico e a realidade do isolamento social. 

Apesar das semelhanças, como já mencionado, a ideia da série era tratar de outro assunto, sob outra ótica, mas nas estratégias de divulgação e mesmo nas entrevistas com os criadores, a pandemia sempre era mencionada, ganhando destaque em muitas das vezes. Este tópico será expandido na análise dos processo de circulação , que foca nas peças de divulgação da série. Porém, podemos ressaltar  que as representações e questionamentos que a obra faz não são exatamente os mais coerentes para o momento em que foi lançada. De fato, algumas correlações são possíveis, mas houve certo exagero na associação de Boca a Boca com a COVID-19, principalmente nas tentativas de reforçar o texto da série como um comentário responsável sobre aquele momento vivido. 

Outros dois parâmetros podem ser, aqui, tomados juntos, pois esbarram um no outro na construção que a série faz de seus personagens. Isso porque a narrativa evidentemente preocupa-se com a questão da diversidade e trabalha para quebrar alguns estereótipos. Com relação aos jovens, há diversas configurações amorosas que não são definidas. Fran parece ter sentimentos por Bel. Chico é apaixonado por Maurílio. Alex gosta de Manu. Apesar desses pares, os personagens se relacionam também com outras pessoas e em nenhum momento a questão de suas sexualidades é definida, quebrando com a dualidade homossexualidade-heterossexualidade, sem ao mesmo tempo definir uma bissexualidade ou outro rótulo.

A personagem de Fran também reforça algumas questões identitárias, usando seu cabelo em penteado black power e mantendo seus pelos das axilas, quebrando com a ideia de uma padronização dos corpos femininos. Chico também tem suas unhas e cabelos pintados, além de apresentar uma silhueta com aspectos femininos – corpo magro e cabelos longos. Em diversas cenas, o personagem aparece nu em tela e tomado de costas. Quando está com Maurílio, a cena cria uma ambiguidade a partir do corpo do personagem, que não se define visualmente como masculino nem como feminino [Figura 10]. Essas escolhas refletem a intenção apontada por Esmir Filho de mesclar azul e rosa para formar um roxo vivo, que amplia os espectros. Outro ponto válido de ser destacado é a figura do médico da cidade, homem negro em um ambiente majoritariamente branco, que possui voz de autoridade e direciona as ações iniciais com relação ao combate à doença. 

Tais representações provocam uma ampliação do horizonte do público, principalmente a partir do embate geracional entre pais e filhos. No caso de Alex e sua mãe, há argumentos a favor do veganismo contrapostos à importância do agronegócio para a sociedade e a economia. Para Chico e seu pai, questões religiosas são contrapostas com a expressão da identidade do jovem. Assim como quando a doença começa a tomar maiores proporções, há diferentes pontos de vista com relação à necessidade do isolamento social entre os moradores da cidade. A diversidade de pontos de vista e a inserção de assuntos relevantes na atualidade, como a modificação genética e a desinformação gerada pelas redes sociais, tornam a trama mais rica e pertinente para o público de forma geral.

Já com relação à originalidade, o que ganha destaque é a proposta de criar uma série voltada ao público jovem ambientada numa cidade pequena do interior, o que cria diversos contrastes que são explorados de maneira alegórica pela produção. Apesar de não delimitar um universo completamente verossímil, a intenção é representar um microcosmo que sintetize características proeminentes do Brasil atual e configure, a partir de simbolismos, uma crítica à onda de conservadorismo que ganhou força no país ao longo da última década, principalmente durante o governo Bolsonaro. Isso traz mais camadas de leitura à Boca a boca, fugindo do lugar-comum de séries adolescentes mais realistas ou focadas em relações pessoais. 

A experiência estética no âmbito da criação audiovisual

Além de verificar se a narrativa foi bem construída com relação ao enredo e personagens, transmitindo uma mensagem audiovisual relevante e com diferentes pontos de vista, analisa-se ainda a capacidade da série em usar seus recursos de storytelling para criar oportunidades para que os telespectadores interajam com o texto da obra, seja através de conjecturas e interpretações ou da produção criativa de conteúdo. Ou seja, os parâmetros utilizados aqui dizem respeito à experiência estética que o público tem com a série, a partir das lacunas deixadas pelos criadores, para gerar entendimentos, opiniões e novos produtos criados a partir do universo ficcional em questão (Borges; Sigiliano, 2021). 

O primeiro parâmetro diz respeito à experimentação da linguagem audiovisual que, de Boca a Boca, podemos relacionar ao uso das inúmeras telas presentes na série. Já no piloto, há um esforço para tornar os celulares aparelhos quase onipresentes nas cenas com os jovens da cidade. Isso porque suas redes sociais são importantes elementos narrativos, fornecendo informações importantes que vão ajudar a levar a trama adiante. Depois que Bel adoece e é internada, por exemplo, é através de seus vídeos gravados que temos mais dimensão da personalidade da personagem e de sua relação com Fran. Quando o vírus começa a se espalhar, também há uso de inúmeras telas verticais, como de dispositivos móveis, que se alternam na tela, em composições variadas, para refletir a agitação social que acompanhou o surgimento da doença [Figura 11]. O uso de hashtags e marcações de outros perfis, assim como animações de curtidas e comentários em tela são tipos de grafismos aos quais a série recorreu por diversas vezes. 

A cena citada anteriormente, do estudante que se suicida durante uma live do Instagram, é bastante representativa do papel que as diferentes telas têm na obra, pois a partir dos comentários adicionados na edição, de personagens comentando o ocorrido em tempo real, foi possível potencializar a tensão do acontecimento e gerar antecipação no público sobre o que iria acontecer. A descoberta do perfil fake de Manu por Chico, suas conversas no aplicativo de relacionamentos com Maurílio, a relação de Alex e Manu via webcam e a sequência em que os estudantes lançam o #desafiodobeijo nos stories do Instagram são outros exemplos que mostram a articulação entre a narração da câmera e as capturas de tela que ajudam a criar uma estrutura narrativa rica e que dialoga diretamente com o tema e público-alvo da série. 

Por coincidência, tal estética foi muito similar ao que passou a ser realizado durante a pandemia de COVID-19. Identificada mais rapidamente na produção publicitária e, então, em obras de ficção, o que foi chamado de estética do isolamento (Torres et al, 2022) aproveitou recursos como câmeras de celulares, webcams, imagens menos limpas e tratadas e a presença de telas para tornar possível o fazer audiovisual num período de isolamento social. Apesar de não ter sido idealizada pensando neste contexto, a composição visual de Boca a Boca foi uma das primeiras obras lançadas a trazer tais elementos numa produção de maior escala, visto que havia sido gravada previamente. Mesmo o uso de cenas externas com ruas vazias é presente na série, o que reforçava a questão do distanciamento proposto como medida de segurança.

A composição imagética adotada pela série explora dualidades e contrastes de forma visual, como já comentado, e contrapõe tanto personagens em situações de conflito, como estes e o ambiente onde vivem. O uso da paleta de cores entre o rosa, azul e o roxo, assim como de luz negra e maquiagens fluorescentes também delimita ambientes e atmosferas específicas, principalmente relacionados aos jovens de Progresso e às festas organizadas pela aldeia/seita. Dessa forma, Boca a Boca traz o embate geracional que busca tratar para o primeiro plano, usando essa dinâmica para orientar a mise-en-scène.

 Na série podemos observar  a adoção de  setas chamativas em diversos momentos, como na trilha sonora que cria realça momentos de perigo ou mistério, nos figurinos que salientam características relevantes dos personagens ou mesmo no texto, a partir dos nomes da cidade e da escola, como mencionado anteriormente, que já orientam o telespectador interagente para uma visão sobre as dinâmicas presentes em Progresso. Diálogos também ajudam a antecipar alguns acontecimentos futuros, como o da mãe de Fran quando fala sobre seu cansaço e impossibilidade de trabalhar e o de Alex com sua irmã, que já aludem ao arco do melhoramento genético dos bois logo nos primeiros episódios da série. 

Nas sequências fantasiosas, entretanto, notam-se recursos de storytelling pois estas não são apresentadas de forma contextualizada. Começamos a ver cenas do tipo com Fran, que do círculo de protagonistas, é a primeira a desenvolver a doença. Até então, sabemos apenas que ela possui algum tipo de trauma da infância com relação a uma irmã falecida, e que usa a ilustração como meio artístico para dar vazão a seus sentimentos. Assim, quando vemos a personagem caminhando por um ambiente onírico, de um bosque saturado com a cor rosa e ventos que não cessam, podemos interpretar como uma visão poética ou um sonho que se torna pesadelo, quando ela cai em uma cova aberta no chão e começa a ser enterrada. Essa cena se repete algumas vezes ao longo dos episódios e representa o maior medo de Fran, mas só descobrimos isso ao final da série, assim como a metamorfose de Alex, que entendemos como  visão subjetiva apenas no episódio seguinte a sua veiculação. Com isso, criam-se momentos em que a lógica racional da série é confrontada, sem dar imediatamente ao público todas as peças para entender como ela ainda se mantém coerente com a linha de acontecimentos apresentada. 

A produção não faz uso de efeitos especiais narrativos, caracterizados por um clímax ou reviravolta no enredo que muda de forma radical o entendimento que temos sobre um personagem, um arco ou até mesmo de todo o universo ficcional (Borges et al, 2022). Em Boca a Boca, há momentos de descoberta que impactam os personagens e suas relações, como quando Chico percebe que o perfil Manu é falso ou mesmo a explicação das alucinações vividas por Fran e Alex como uma visão de seus maiores medos causada pela doença. Entretanto, essas informações não reconfiguram a trama de forma tão impactante e, por isso, não podem ser classificadas como efeitos especiais narrativos. 

Não há referências intertextuais explícitas a outras obras ficcionais, mas os paralelos da trama com a pandemia de COVID-19 engendrando camadas interpretativas externas  ao universo da série. Desde a incorporação de elementos como máscaras e álcool em gel – e o próprio medo do contato, de forma geral -, até a situação de personagens “furando” a quarentena e descumprindo a ordem de distanciamento social e o contexto de fake news e desinformação instaurado diante do desconhecido [Figura 12]. Num outro ponto, há também muitas obras plásticas – pinturas, esculturas – com referências à criação de bois, em especial do período colonial. Isso dinamiza os diálogos, colocando em perspectiva a história do país e suas raízes escravocratas, além da ideia de dominação da terra e da própria natureza. 

Através de tantas dualidades trabalhadas por Boca a Boca, traz-se a discussão sobre a demonização do outro, do diferente, do que foge à norma estabelecida. A doença do beijo, que deixa os jovens apáticos, dormentes e inviabiliza o contato, é uma alegoria para a tentativa de controle da sociedade sobre tudo que é desviante e ameaça a coesão social. No fim, também de maneira simbólica, a cura é encontrada na abertura para o diálogo, compreensão e afeto. A série intensifica o conflito entre pais e filhos a partir de uma forte estilização, que algumas vezes foge do realismo e cria uma atmosfera de fábula, dos personagens, ambientes e articulação das imagens, sintetizando na montagem o choque entre passado e presente. Percebe-se, então, que a onda de conservadorismo e a forte polarização política do Brasil a partir da última década, foram  mais determinantes para a criação do universo ficcional e da mensagem audiovisual que o próprio contexto pandêmico, ao qual a série ficou mais diretamente atrelada. 

Referências

BORGES, G. et al. A qualidade e a competência midiática na ficção seriada contemporânea no Brasil e em Portugal. Coimbra: Grácio Editor, 2022. 

BORGES, G.; SIGILIANO, D. Qualidade Audiovisual e Competência Midiática: proposta teórico- metodológica de análise de séries ficcionais. Encontro Anual da Compós, XXX, São Paulo, Anais. 2021. Disponível em: <https://bit.ly/3Bb8OsL>. Acesso em: 18 dez. 2023.

CARMELO, B. BOCA A BOCA: “A epidemia é um ponto de partida para falar sobre as doenças da sociedade”, defende Esmir Filho. Papo de Cinema, 2020. Disponível em: <https://www.papodecinema.com.br/entrevistas/boca-a-boca-a-epidemia-e-um-ponto-de-partida-para-falar-sobre-as-doencas-da-sociedade-defende-esmir-filho/>. Acesso em: 15 dez. 2023. 

JOHNSON, S. Tudo que é ruim é bom para você: como os games e a TV nos tornam mais inteligentes. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

PRISCO, L. “Boca a Boca é sobre o vírus do conservadorismo”, diz diretor Esmir Filho. Metrópoles, 2020. Disponível em: <https://www.metropoles.com/entretenimento/televisao/boca-a-boca-e-sobre-o-virus-do-conservadorismo-diz-diretor-esmir-filho>. Acesso em: 15 dez. 2023. 

SIJLL, J. V. Cinematic Storytelling: the 100 most powerful film conventions every filmmaker must know. Studio City: Michael Wiese Productions, 2005.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 4. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2014. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7747362/mod_resource/content/1/Todorov%20Introducao%20a%20literatura%20fantastica.pdf>. Acesso em: 05 jul. 2023.

TORRES, Letícia; FURTUOSO, Gustavo; Perobeli, Luma; BORGES, Gabriela. La Publicidad y la pandemia de covid-19 en Brasil: estética del aislamiento.. In: Andrea De-Santis; Angel Torres-Toukoumidis; David Armendariz.. (Org.). Perspectivas transdisciplinarias sobre la comunicación estratégica digital. 1ed.Ciudad de Mexico: McGraw-Hill Interamericana Editores, 2022, v. 1, p. 15-28.

WELLE, Deutsche. Há 30 anos, OMS retirava homossexualidade da lista de doenças. Carta Capital, 2020. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/diversidade/ha-30-anos-oms-retirava-homossexualidade-da-lista-de-doencas/>. Acesso em: 16 dez. 2023. 

Observatório da Qualidade no Audiovisual

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