Observatório da Qualidade no Audiovisual

Diário de Um Confinado

Este texto propõe uma análise da Qualidade Audiovisual, no âmbito da Criação (BORGES; SIGILIANO, 2021) da série Diário de um Confinado (Globoplay, 2020). Estamos diante de uma série produzida pelo Grupo Globo exclusivamente para sua plataforma de streaming, o Globoplay. A obra foi idealizada pelo humorista Bruno Mazzeo e Joana Jabace, dirigida por Jabace e protagonizada por Mazzeo, contratado de longa data da emissora, esposo de Jabace e personalidade reconhecida no humor brasileiro. Além de Mazzeo, a produção conta com a equipe de roteiristas Rosana Ferrão, Leonardo e Verônica Debom.

Devido a ocorrência da pandemia mundial do novo coronavírus, muitos dos projetos audiovisuais programados para serem lançados pela plataforma ao longo do ano de 2020 tiveram suas gravações adiadas por tempo indeterminado, sendo necessária a criação de projetos que pudessem ser realizados seguindo rigorosos protocolos sanitários definidos pela Organização Mundial de Saúde, a fim de preservar a vida e conter a disseminação do vírus. Com isso, a ficção seriada foi gravada no apartamento de Mazzeo e Jabace, que foi adaptado para se assemelhar a um loft de solteiro, junto a uma pequena equipe respeitando o distanciamento social, isto é, Jabace, Mazzeo, o diretor de fotografia Glauco Firpo, que realizou isolamento de um mês com o casal e seus dois filhos, além da interação da vizinha do casal, a atriz Joana Bloch. Existe importância documental na obra, pois foi uma das primeiras séries a apresentar a realidade e os desafios do brasileiro perante a pandemia, sendo a obra responsável por salientar de maneira gradual o período de adaptação perante a nova realidade vivida entre a população, além de ser responsável por apresentar um novo modelo de produção audiovisual, visto que a produção contou com a gravação a partir de celulares de alta definição e a gravação de imagens através de videoconferências. 

A série tem como público alvo pessoas que acompanham o humor produzido pela Rede Globo desde a sua criação, visto que o protagonista mantém vivo o legado de seu pai, o ator e humorista Chico Anysio (1931-2012), figura notável na história do humor brasileiro na rádio, televisão e cinema. Duas temporadas foram disponibilizadas, sendo a primeira veiculada em 26 de junho de 2020, quatro meses após a confirmação do primeiro contaminado por COVID-19 no país, e tendo sua segunda temporada lançada em 25 de setembro de 2020, período em que foram estimuladas certas flexibilizações sanitárias, permitindo a abertura de centros comerciais e a realização de atividades ao ar livre. Cada temporada consiste em 12 e 07 episódios respectivamente, que possuem duração aproximada de 10 a 15 minutos cada. Nesta flexibilização, cenas externas puderam ser gravadas, além da interação com outros atores, sempre obedecendo os protocolos de sanitização.

Diferente das séries produzidas pelas demais plataformas de streaming em operação no país, os quatro primeiros episódios foram exibidos com exclusividade na TV aberta pela Rede Globo, substituindo o extinto Zorra (2015-2020), que também teve sua produção interrompida devido a pandemia. Segundo o site UOL, as exibições dos episódios na tevê aberta geraram picos de audiência semelhantes ao do Zorra, garantindo com folga a liderança absoluta no horário, além disso, sua veiculação na TV aberta teve como principal intuito atrair novos assinantes para o Globoplay, que é divulgado de maneira intensa nos intervalos comerciais da emissora.

O Plano de Expressão é formado por quatro eixos: ambientação, fotografia, edição e trilha. A locação principal da trama é a da casa do protagonista, Murilo. O solteirão passa o maior tempo em isolamento social devido ao contexto pandêmico da diegese da trama. A cada início de episódio um beat marca o enredo, Murilo acorda cansado em sua casa, vai ao espelho, anota que está a mais um dia em isolamento e tenta resolver o conflito daquele episódio, seja pedir uma pizza, uma reunião de condomínio online, aprender a cozinhar, etc. 

Figura 01 – Murilo ao acordar

Fonte: Diário de Um Confinado

Na segunda temporada, com a flexibilização da pandemia do COVID-19 na diegese, outros cenários começam a ser utilizados, principalmente as externas. Aparecem cenas no quarteirão do bairro do protagonista, em um bar a céu aberto, na praia e, no último episódio da segunda temporada, na casa da mãe do protagonista junto com o restante da família. Para além destas locações, uma ambientação peculiar é a da estética do isolamento, ou seja, reuniões online em diferentes casas, como na do médico do protagonista e a psicanalista.

Figura 02 – Murilo conversa com a mãe por videochamada

Fonte: Diário de Um Confinado

A fotografia, cores, iluminação e figurino visam uma forma de promover a estética do isolamento. Estética também promovida pela narrativa e pelo humor trágico do protagonista, ou como disse Pedro Bial em entrevista com o ator Bruno Mazzeo, “um palhaço melancólico”. O ponto marcante na fotografia que é importante para a diegese da história é a quebra da quarta parede, em que Murilo utiliza o recurso como forma de confessionário com o público, afinal, pelo título, a ficção é um “diário”, e, às vezes, para buscar um público aliado às peculiaridades de outros personagens. 

Figura 03 – Murilo quebra a quarta parede

Fonte: Diário de Um Confinado

A edição do programa é baseada em cenas curtas. Um efeito interessante de apontar é o proposto no episódio Vida Social (T02E05), em que Murilo está caminhando no bairro e imagina que uma nuvem de coronavírus está o perseguindo. 

Figura 04 – Nuvem de coronavírus

Fonte: Diário de Um Confinado

A abertura ficou a cargo da canção AA UU do grupo de rock Titãs. A letra aponta para o estilo de vida do protagonista, em que ele pensa muito, grita de desespero, come e dorme: “Estou ficando louco de tanto pensar / Estou ficando rouco de tanto gritar/ Eu como, eu durmo, eu durmo, eu como / Está na hora de acordar / Está na hora de deitar/ Está na hora de almoçar / Está na hora de jantar”. Para além desta canção, outras músicas brasileiras fazem parte da trilha da série, como Menina, Amanhã de Manhã de Tom Zé.

O Plano de Conteúdo se detém sobre os personagens e a narrativa da ficção. Utilizaremos as propostas de Egri (2004) para análise dos personagens e as de Newman (2006) para observar a narrativa. Em The Art of Dramatic Writing, Egri propõe o conceito de bone structure, ou uma “estrutura óssea” dos personagens, em que eles são tridimensionais, com aspectos fisiológicos, sociológicos e psicológicos. A partir destas dimensões, é possível entender a motivação do personagem em cena. Já para análise da narrativa, a escolha por Newman é porque o autor consegue em três disposições – beats, episódios e arcos, trabalhar as tramas de ficções seriadas. 

Murilo

Um homem na faixa de seus 35 anos, possui porte físico comum da sua idade, sendo que, por conta do isolamento social, engordou alguns quilos. Pele branca, olhos castanhos, cabelos lisos na altura das orelhas, barba grisalha e óculos redondos de armação preta. Murilo é um solteirão de classe média, aparentemente um filho mimado, desinibido, extrovertido e muito sarcástico. Vive sozinho em um loft de solteiro na cidade do Rio de Janeiro. Possui alguns poucos amigos que mantém contato através de chamadas de vídeo e lhe auxiliam nas dificuldades do dia a dia, além de sua mãe coruja, que condena suas atitudes perante a pandemia. Murilo demonstra ser a típica personagem sem noção, principalmente com seus vizinhos, visto que constantemente é visto em situações constrangedoras. O personagem também demonstra solidão, já que pouco antes da pandemia foi deixado por sua ex-namorada.

Marília

Uma mulher que beira, senão ultrapassa, seus 60 anos de idade, de pele branca, cabelos na altura dos ombros com luzes, e não se vê nada abaixo de seu peito, já que só a vemos a partir da tela do computador ou celular de Murilo. Marília representa as famosas “tias do zap”, que segundo Murilo, seu filho, é a principal fonte de fake news sobre a pandemia. A personagem, nos poucos momentos que aparece, geralmente está eufórica ou irônica, e constantemente critica as atitudes do filho perante a pandemia.

Adelaide

Uma mulher em torno de seus 40 anos, possui pele branca, corpo magro, cabelos com cachos largos na altura dos ombros. Adelaide é vizinha de Murilo, solteirona como ele e psicologicamente está abalada com a pandemia, seguindo fielmente os protocolos sanitários. O isolamento social é responsável por unir a personagem a Murilo, que passam a interagir devido aos constantes encontros entre os dois no andar de seu prédio. Ao longo da trama, cresce um sentimento entre a personagem e o protagonista, que juntos aprendem a cultivar um relacionamento dentro da realidade pandêmica.

Leonor

Uma mulher com mais de 40 anos, de pele branca, cabelos na altura dos ombros e corpo magro. Leonor é a psicóloga de Murilo e demonstra certo abalo com o isolamento pela convivência com seu filho adolescente, provocando na personagem cansaço e alguns surtos involuntários, motivo pelo qual desabafa sobre seus problemas com Murilo.

Dr. Guilherme Lemos

Um homem em torno de seus 40 anos, de pele negra, careca, porte físico forte e possui barba que cobre boa parte de seu rosto. É o médico de Murilo, e psicologicamente aparenta ser um homem tranquilo até mesmo quando o protagonista aterroriza seu filho em uma videochamada. 

Sérginho Barbalho

Um homem em torno de seus 35 anos, de pele branca, cabelos longos com rabo de cavalo, uma barba moderadamente aparada e óculos em formato retangular. Serginho é amigo de Mazzeo, e psicologicamente tem um espírito festeiro e tudo indica que antes da pandemia trabalhava como DJ em casas noturnas.

Marco Antônio

Um adolescente em torno de seus 16 anos, possui cabelos cacheados na altura dos ombros, pele branca e porte físico magro. Marco Antônio é filho de Drª Leonor e psicologicamente é considerado folgado e preguiçoso, motivo principal ao qual leva Drª Leonor à loucura. A personagem apresenta atitudes típicas de um adolescente e é a personagem mais jovem na série.

Diário de Um Confinado é uma série de comédia que não possui arco longo entre os episódios, exceto na mudança entre as temporadas, em que novos ambientes e situações são exploradas pela produção devido às flexibilizações permitidas. Na primeira temporada, cada episódio possui arco delimitado, como o piloto, Pizza, em que o enredo está em torno de Murilo pedir uma pizza por delivery e sentir-se inseguro ao consumi-la. A trama consiste na vida de Murilo, um homem que resolve criar um diário em vídeos sobre as peripécias que lhe acontecem em seu período em isolamento social, nos proporcionando momentos de risos em que, através de comentários irônicos, mostra suas atitudes e despreparo para lidar com as situações sem perder a sinceridade e o espírito de que errar é humano, e que cada dia vivido é passível de aprender alguma lição. Ao decorrer da série, somos cativados pela ingenuidade e bom caráter de Murilo, além da falta de habilidade na realização de tarefas comuns do cotidiano, que perante a situação sanitária do mundo, é mútuo o sentimento de estar perdido e não saber o que está fazendo.

A Mensagem Audiovisual é avaliada segundo os parâmetros de qualidade: oportunidade, ampliação do horizonte do público, diversidade, estereótipo e originalidade/criatividade. No parâmetro oportunidade, a série se destaca por possibilitar trabalho no momento da pandemia do COVID-19, em que projetos dramatúrgicos no país foram pausados. Em entrevista ao programa Encontro com Fátima Bernardes (Rede Globo, 2012-Presente), a atriz Fernanda Torres, que na série interpreta Leonor, analista de Murilo, disse que foi uma surpresa trabalhar de casa com audiovisual no momento pandêmico, visto que outro projeto dela tinha sido interrompido. Ela conta que recebeu em casa da diretora, Joana Jabace, dois highlights e dois microfones, pediu ajuda ao filho (que também participa da trama) para montar o equipamento, e apontou como faz diferença ter uma equipe para trabalhar por trás das câmeras. Entretanto, mesmo com pouco material, as cenas conseguiram ser realizadas. 

Sobre a ampliação de horizonte do público, o quesito da velocidade em que a obra foi criada é relevante, pois proporcionou que os espectadores conseguissem viver uma experiência cômica que pudesse aliviar a dor em um momento tão sofrível. Em entrevista ao GShow, Bruno Mazzeo pontua sobre o assunto: 

A velocidade de estar fazendo uma crônica atual de um momento que a gente está vivendo. Acho que essa é a maior virtude do projeto. É a capacidade de a gente produzir uma dramaturgia sobre algo muito recente. É uma crônica com humor, mas com melancolia, com drama, com dor. O grande barato é a gente estar fazendo esse projeto tão rápido. Isso é o maior ativo do projeto: criar dramaturgia de uma realidade tão recente para a humanidade toda. (GSHOW, 2020)

A diversidade na série não é muito presente, temos apenas um ator negro. Além disto, a série se passa no contexto de pessoas de classe média/alta que moram no Rio de Janeiro, então, não é possível se atentar para outras realidades. O estereótipo atuante é o de solteirão rico que nunca aprendeu a lavar um banheiro e tem dificuldades de arrumar a casa ou cozinhar, como visto no episódio Faxina (T01E03). 

Por fim, no quesito da originalidade/criatividade, a série inova na questão da criação. Devido ao contexto pandêmico, a ficção começou a ser gravada na casa de Joana Jabace e Bruno Mazzeo, a única interação foi com a vizinha de prédio, a atriz Joana Bloch, e com o diretor de fotografia, Glauco Firpo, que realizou isolamento de um mês com Joana Jabace, Bruno e seus dois filhos. Na segunda temporada, com flexibilização dos protocolos da pandemia, outros atores puderam interagir, principalmente no Episódio Especial (T02E07) de natal. Outra inovação, atrativa para o público contemporâneo, é o tempo de episódio com no máximo 15 minutos, com exceção do Episódio Especial, rompendo o padrão de comédia televisiva que vai dos 22 aos 30 minutos por episódio.

Figura 05 – Bastidores da gravação

Fonte: Google imagens, Rede Globo e Diário de Um Confinado

Referências

BORGES, Gabriela. SIGILIANO, Daiana. Qualidade Audiovisual e Competência Midiática: proposta teórico-metodológica de análise de séries ficcionais. In: XXX Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo – SP, 27 a 30 de julho de 2021. Disponível em: <https://bit.ly/3Bb8OsL>. Acesso em: 14 nov. 2021. 

EGRI, Lajos. The Art of Dramatic Writing: Its Basis in the Creative Interpretation of Human Motives. New York: Touchstone, 2004.

GSHOW. ‘Diário de um Confinado’: saiba tudo sobre a série multiplataforma. Disponível em: <https://gshow.globo.com/series/diario-de-um-confinado/noticia/diario-de-um-confinado-saiba-tudo-sobre-a-serie.ghtml>. Acesso em: 18 set. 2021.

NEWMAN, Michael Z. From Beats to Arcs: Towards a Poetics of Television Narrative. The Velvet Light Trap, University of Texas Press, n. 58, p. 16-28, 2006. Disponível em: <http://my.fit.edu/~lperdiga/HUM%2030850-Television%20and%20Popular%20Culture–Newman.pdf>. Acesso em: 03 jul. 2020.

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