Observatório da Qualidade no Audiovisual

Eu, a Vó e a Boi

Este texto propõe uma análise da Qualidade Audiovisual, no âmbito da Criação (BORGES; SIGILIANO, 2021) da série Eu, a Vó e a Boi (Globoplay, 2019). Assim como em nossa última análise, Diário de Um Confinado (Globoplay, 2020), esta é uma série produzida para o serviço de streaming do Grupo Globo, pensada para ser assistida na plataforma com todas as especificações que o vídeo sob demanda possibilita. 

A série foi inspirada em tweets do influenciador Eduardo Hanzo, publicados em 2017. Em entrevista ao GShow (2019), Eduardo conta que por enquanto que estava em uma fila da padaria, publicou no Twitter sobre o ódio que sua avó nutria pela vizinha há cinquenta anos, que apelidou de “a Vaca”, pois tinha “roubado” o namorado dela, entretanto, na década de 1990, a avó de Eduardo mudou o apelido para “a Boi”, pois achou que o primeiro termo seria machista. A briga passou por muitos níveis, desde uma avó pagar para crianças tocarem a campainha e fugir até a outra avó desligar o disjuntor da casa por enquanto que a vizinha ia fazer inalação por problemas respiratórios. A história se popularizou na internet e chamou a atenção da roteirista Gloria Perez, que mostrou para o diretor Miguel Falabella. 

A direção ficou a cargo de Miguel, famoso pelos personagens cômicos em Sai de Baixo (Rede Globo, 1996-2002; 2013) e Toma Lá, Dá Cá (2005; 2007-2009), além de roteiro nessas mesmas séries e co-autoria de roteiro em TV Pirata (Rede Globo, 1988-1992). Ou seja, no Brasil, Miguel Falabella tem uma antiga trajetória no humor, o que acarreta um estilo próprio de narração. Os roteiros dos episódios foram escritos por Miguel, Eduardo, Flávio Marinho e Ana Quintana. A direção artística é de Paulo Silvestrini. Nos papéis principais, melhores descritos a frente, temos as atrizes Arlete Salles e Vera Holtz, e o ator Daniel Rangel.

Eu, a Vó e a Boi possui uma temporada com seis episódios, cada um entre 29 a 42 minutos, um pouco acima do tempo clássico da comédia televisiva, de 22 a 30 minutos. Como expomos, ela foi pensada para o Globoplay, mas em novembro de 2021, nas madrugadas de segunda a sexta, dentro da sessão Corujão (Rede Globo, 1972-Presente), substituirá a primeira temporada de Desalma (Globoplay, 2020-Presente) na programação da tevê aberta. 

O Plano da Expressão é formado por quatro eixos: ambientação, fotografia, edição e trilha. Entre os cenários internos, temos as casas de Turandot e Yolanda, a pizzaria do Cabello, o brechó de Orlando, como palco para alguns dos conflitos familiares entre as personagens. Os conflitos mais importantes da série ocorrem na degradante rua com uma vala aberta que divide as casas das duas avós, sendo esse espaço um verdadeiro ringue onde as Yolanda e Turandot realizam suas peripécias malignas uma contra a outra. No último take da série há uma comparação entre a rivalidade das duas avós e o desacordo que divide o Brasil na contemporaneidade, buscando colocar o país em uma vala cercada de ódio. Entretanto, isto só aparece na última cena, em outros momentos não é revelado analogias semelhantes.

Figura 01 – Vala que divide as casas das avós e o Brasil como “vala”

Fonte: Eu, a Vó e a Boi 

A fotografia consiste de planos fechados, planos detalhes, primeiros e primeiríssimos planos, características marcadas na estética de telenovela clássica. São muitas as cenas em que personagens são sinalizados como observadores através de recursos de desfoque de câmera, que se limita a focar os objetos principais da cena que promovem algum desdobramento de seu arco na narrativa. Em todas as cenas em que os personagens são vistos na rua, tons de cinza são predominantes em seu plano de fundo, enquanto os personagens em cena se mantêm coloridos com o intuito de manter seu “brilho” perante os tons urbanos de um bairro abandonado.

Figura 02 – Desfoques de câmera para sinalizar a observação de personagens selecionados

Fonte: Eu, a Vó e a Boi 

Assim como em Samantha! a obra cumpre o papel de manter uma edição ágil, com grande mobilidade de câmeras e sequências curtas seguindo as demandas do público alvo dos serviços de streaming. Há também o uso da metalinguagem nas cenas em que são reproduzidos os vídeos do canal de Matdilou, em que as imagens em widescreen anamórfico são reduzidas a uma proporção para televisores de qualidade padrão 4:3 para emular um filme dentro de um vídeo.

Figura 03 – Canal do Youtube de Matdilou

Fonte: Eu, a Vó e a Boi 

Canalizando toda a energia da série, a sequência de abertura produzida em animação gráfica contribuiu para a introdução do espectador a esse universo urbano acinzentado do bairro, onde somos transportados para cavernas em camadas obscuras da terra, a fim de comparar a podridão dos hábitos humanos, como dentro da condenável vala aberta no meio da rua. Embalada pela canção de rock You Really Got Me, da banda britânica The Kinks, o tema de abertura retrata o clima de guerra entre as protagonistas, que de maneira constante são “pegas” (got) uma pela outra. 

A trilha sonora é composta, em sua maioria, por músicas interpretadas em inglês, que são utilizadas para explorar as características dos personagens. Há certa diversidade nos estilos musicais das canções inseridas na trama, assim como as canções incidentais. Alguns personagens possuem referências musicais que apontam sobre suas próprias estruturas psicológicas e sociológicas, como: o embalo do rhythm & blues em referência à personagem Norma; a latinidade na versão de Sway de Michael Bublé na personagem Milagros (interpretada por Paula Cohen); o soft rock em If You Could Read My Mind que guia um momento melancólico de Roblou, entre outras.

O Plano de Conteúdo se detém sobre os personagens e a narrativa da ficção. Utilizaremos as propostas de Egri (2004) para análise dos personagens e as de Newman (2006) para observar a narrativa. Em The Art of Dramatic Writing, Egri propõe o conceito de bone structure, ou uma “estrutura óssea” dos personagens, em que eles são tridimensionais, com aspectos fisiológicos, sociológicos e psicológicos. A partir destas dimensões, é possível entender a motivação do personagem em cena. Já para análise da narrativa, a escolha por Newman é porque o autor consegue em três disposições – beats, episódios e arcos, trabalhar as tramas de ficções seriadas.

Roblou

Interpretado por Daniel Rangel, é o protagonista da ficção, narrador e o “Eu” de Eu, a Vó e a Boi. Apesar do protagonismo, existe episódio em que a sua trama é colocada em segundo plano frente à outras tramas ladeadas. O personagem acabou de completar 18 anos, é midiaticamente atraente, costuma estar sem camisa, branco e de cabelo liso. Seu nome é uma homenagem ao ator Rob Lowie. É filho de mais velho de Montgomery (Marco Luque) e Norma (Danielle Winits), além de irmão de Matdilou (Matheus Braga) e sobrinho de Marlon (Magno Bandarz). Nasceu e cresceu no mesmo bairro em que mora até hoje, entre os conflitos de suas avós. Mora com a avó Turandot, junto à mãe e tia. O pai o abandonou ainda criança, mas durante a série, volta para o bairro. O estado mental de Roblou costuma ser tranquilo e pouco questionador, mesmo diante de conflitos.  

Turandot (Vó) 

Interpretada por Arlete Salles, é a “Vó” de Eu, a Vó e a Boi. É uma senhora na faixa dos 70 anos, viúva, aposentada, loira, de pele clara. É dona da casa onde mora junto com Roblou e suas duas filhas, Celeste e Norma (mãe de Roblou), vive neste no bairro Tudor Afogado há longos anos. Seu temperamento é colérico e ela nutre um profundo ódio por sua vizinha da frente, Yolanda.

Yolanda (Boi)

Interpretada por Vera Holtz, é a “Boi” de Eu, a Vó e a Boi. Também é uma senhora na faixa dos 70 anos, viúva, aposentada, presidente da Associação dos Moradores do bairro Tudor Afogado, cabelo escuro e pele clara. É dona da casa onde mora junto com Matdilou e Marlon. Assim como Turandot, Yolanda tem um temperamento colérico, e sempre está a postos para chatear e implicar com a vizinha. 

Figura 04 – Yolanda, Roblou e Turandot

Fonte: Estevam Avellar / Globo

Demimur

Interpretada por Valentina Bulc, é uma jovem impetuosa e segura sobre seu destino. É branca, magra, midiaticamente atraente e de cabelo loiro comprido. É dançarina e sonha em competir internacionalmente, seu nome é uma homenagem à atriz Demi Moore. Mora com o tio, no andar de cima de sua lanchonete. Vive com Roblou um romance intenso, em que acaba engravidando. 

Figura 05 – Demimur e Roblou

Fonte: Victor Pollak / Globo

Norma

Interpretada por Danielle Winits, é uma mulher midiaticamente atraente, na faixa dos 45 anos, magra, alta, loira e costuma andar com roupas brilhantes que demarcam o corpo. Mesmo tendo sido abandonada pelo ex-esposo, Montgomery, ainda nutre amor por ele. Trabalha em boates noturnas, de onde são seus amigos. Nos períodos diurnos, geralmente está bêbada ou com sono. Possui problemas com bebida alcoólica. Não é presente na educação de Roblou, mas é carinhosa com o filho. 

Montgomery

Interpretado por Marco Luque, é um homem midiaticamente atraente, na faixa dos 45 anos, magro, alto, pardo e de cabelo escuro. É um personagem estereotipado como “malandro”, tenta ganhar dinheiro em cima de todas as suas ações e das dos outros também. Chegou a roubar dinheiro a sogra, Turandot, antes de abandonar Norma e Roblou, o que faz Turandot acusá-lo de destruição de sua vida. É esperto e premedita seus atos. 

Figura 06 – Norma e Montgomery

Fonte: Victor Pollak / Globo

Seu Rocha 

Interpretado por Alessandra Maestrini, é uma personagem que assume a função de agente policial por volta de seus 40 anos, possui estatura baixa e cabelo curto penteado para trás com gel. A profissão lhe faz forte em seus posicionamentos, apesar de se mostrar sensível em alguns momentos. A única amiga que demonstra ter é Norma. Possuindo características masculinas e femininas ao longo da narrativa, a personagem se desprende dos gêneros masculino e feminino, sendo sua fluidez, uma característica própria.

A ficção inicia com narração de Roblou sobre o duelo entre as avós, que moram uma na frente da outra desde que ele se entende por gente. Esta é uma história de inimizade, conflito e ódio, o plot guia é a relação entre Turandot (Vó) e Yolanda (Boi). As duas senhoras, por serem aposentadas e viúvas, possuem muito tempo livre, foco e vão até as últimas consequências para interferir negativamente na vida da outra. Até seus respectivos cachorros brigam um com o outro. A vala na rua das duas materializa o rancor entre as duas famílias. Neste meio de desavenças, Roblou busca encontrar amor e harmonia em suas relações, pois não suporta a realidade em que está inserido. 

O conflito principal é ladeado por outros núcleos dramáticos, o que lembra uma telenovela “das 18h” pela temática. Para além dos núcleos diversos, a série conta com muitos personagens coadjuvantes, o que nos parece acontecer porque o conflito central não suporta os seis episódios. Os núcleos são vários: a relação amorosa entre Norma e Montgomery, filhos de Turandot e Yolanda, respectivamente, o romance entre Roblou e Demimur, a amizade de Seu Rocha com Norma e seu romance com Celeste, os relacionamentos amorosos entre Matdilou e Marlon e duas idosas, os casos de desaparecimento de bens materiais no bairro, o desvio de verba na Associação dos Moradores do bairro Tudor Afogado, o noivado entre Celeste e o cozinheiro da lanchonete do bairro (Cabello, interpretado por Edgar Bustamante), entre outros. 

A série tem uma estrutura folhetinesca, com arco longo, mas a quantidade de personagens e tramas ladeadas relembra o clássico de uma telenovela. Ao final dos arcos de Turandot e Yolanda, as duas chegam à beira do colapso, passando perto de assassinato entre as duas, mas a situação não chega a tal ponto. Forçadamente, a vala aberta na rua faz uma referência à situação atual do Brasil, em que os conflitos entre posições diferentes ideologicamente trazem impossibilidade de diálogo.

A Mensagem Audiovisual é avaliada segundo os parâmetros de qualidade: oportunidade, ampliação do horizonte do público, diversidade, estereótipo e originalidade/criatividade. No campo da oportunidade, a série remonta a antigos trabalhos humorísticos realizados por Miguel Falabella, trazendo suas peculiaridades narrativas para a produção de Eu, A Vó e a Boi, cuja a responsabilidade é conquistar o público usufruindo de ingredientes compatíveis com o gosto da audiência proveniente da televisão aberta no Brasil, sendo também capaz de cativar um novo público no streaming, sem que o seu público fiel seja comprometido.

Ao retratar de um tema que viralizou na internet, a série busca êxito através do engajamento orgânico do público existente no Twitter, que ocasionalmente se interessa por produções que são provenientes de histórias dos produtores de conteúdo que se tornam populares nas redes sociais, mas desconhecidos pelo público geral. O campo da oportunidade também é responsável por proporcionar ao espectador interpretações sobre o desfecho dos personagens, já que ao assistir todos os episódios, sente a exploração da toxicidade da população que passa o dia discutindo nas redes sociais. 

É difícil imaginar uma obra de Miguel Falabella em que estereótipos mais comuns não estejam incluídos. Ao abordar temas referentes à comunidade LGBTQIA+, a série peca em querer parecer progressista mirando a atenção do público conservador na inclusão do personagem Seu Rocha, que apesar de possuir um arco que remete o desabrochar de uma borboleta, é reduzido a emular trejeitos masculinos questionáveis, além da personagem servir como um tapa buraco para solucionar problemas amorosos de personagens femininas com desequilíbrios emocionais causados por homens heterossexuais. Uma característica positiva é a liberdade que a personagem dispõe ao não ser engessada a apenas um gênero, incentivando a um público conservador ou ao público progressista a torcer em um desfecho de triunfo para a personagem, que ao virar cantora de ópera quebra a expectativa inicial do público sobre a personagem. Ainda neste campo, devemos levar em conta a criação de personagens de classes sociais menos abastadas, ou que estão em busca de uma ascensão social, mas, que de certo modo acabam agindo de forma primitiva para conquistar benefício financeiro, reforçando a construção do perfil clichê criado pela mídia internacional do brasileiro comum.

Existe a tentativa da obra manter um compromisso para promover a diversidade de gênero entre os personagens, mas são enormes os equívocos éticos que ocorrem no desenvolvimento dos personagens, que estão constantemente fadados a processos de estereotipação para tentar arrancar algum riso do espectador. Existem ressalvas, como no arco em que é discutido sobre etarismo (discriminação baseada em critérios de idade), que é capaz de provocar alguns risos e uma reflexão da hipocrisia da sociedade, mas que se perde ao permitir uma narrativa que favorece a exposição de menores de idade a relacionamentos por interesse. Apesar de Danielle Winitis brilhar no papel de Norma, existe exagero na construção de uma personagem que se propõe ser “engolida a seco” pela comunidade LGBTQIA+, sendo o uso excessivo da palavra “viado” em grande parte de seus diálogos. 

O campo da originalidade/criatividade é marcado pela ousadia dos produtores na criação de uma obra audiovisual transgressora, pois apostaram em diversos personagens que trazem consigo narrativas exageradas e polêmicas, mas que possuem também seu lado mais humanizado, que geralmente são ofuscados pelo excesso de estereótipos. Ponto positivo fica para as cenas que relatam os combates entre Yolanda e Turandot, que tem grande potencial de gerar um novo engajamento na internet após serem revisitadas pelo público do Twitter, já que a série será exibida futuramente pela Rede Globo.

REFERÊNCIAS

BORGES, Gabriela. SIGILIANO, Daiana. Qualidade Audiovisual e Competência Midiática: proposta teórico-metodológica de análise de séries ficcionais. In: XXX Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo – SP, 27 a 30 de julho de 2021. Disponível em: <https://bit.ly/3Bb8Os>. Acesso em: 02 ago. 2021. 

BUBLÉ, Michael. Sway. Canadá: 143, Reprise, 2004. Disponível em: < https://open.spotify.com/track/2ajUl8lBLAXOXNpG4NEPMz?si=4f96adbca69049f0>. Acesso em: 28 out. 2021. 

EGRI, Lajos. The Art of Dramatic Writing: Its Basis in the Creative Interpretation of Human Motives. New York: Touchstone, 2004.

GSHOW. Eduardo Hanzo criou a thread que inspirou ‘Eu, a Vó e a Boi’. 2019. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/8121365/programa/>. Acesso em: 15 nov. 2021. 

KINKS, The. You Really Got Me. Reino Unido: Pye 7N 15673, 1964. Disponível em: <https://open.spotify.com/track/09nZ9ZDWq1rTkmM3WjvMvF?si=aef1778a9d124d9c>. Acesso em: 28 ago. 2021.  

LIGHTFOOT, Gordon. If You Could Read My Mind. Canadá: Reprise, 1970. Disponível em: <https://open.spotify.com/track/57ct8jKi6trntXiRV0NnXi?si=788563aac29e472a>. Acesso em: 28 out. 2021. 

NEWMAN, Michael Z. From Beats to Arcs: Towards a Poetics of Television Narrative. The Velvet Light Trap, University of Texas Press, n. 58, p. 16-28, 2006. Disponível em: <http://my.fit.edu/~lperdiga/HUM%2030850-Television%20and%20Popular%20Culture–Newman.pdf>. Acesso em: 03 jul. 2020.

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