Observatório da Qualidade no Audiovisual

Pé na cova

O seriado Pé na Cova estreou em 24 de janeiro de 2013 e foi exibido pela Rede Globo de Televisão até 07 de abril de 2016. O elenco contava com nomes como Miguel Falabella, Marília Pêra, Daniel Torres e Luma Costa. A direção geral foi de Cininha de Paula.

O enredo se baseava na história de Ruço (Miguel Falabella), dono de uma funerária no Irajá e namorado de Abigail (Lorena Comparato), 30 anos mais nova. Sua ex-mulher, Darlene (Marília Pêra), trabalha como maquiadora de defuntos e vive na mesma casa que o ex-marido. Os dois tiveram dois filhos, Odete Roitman (Luma Costa), que trabalha fazendo strip-tease na internet, e Alessanderson (Daniel Torres), que almeja uma carreira política.

No plano da expressão se destacaram elementos como a vinheta de abertura, que traz várias caveiras – feitas por computação gráfica – dançando, se divertindo e realizando atividades rotineiras, como andar de ônibus ou fazer um churrasco. Essa vinheta dá uma ideia geral do conceito do programa, o qual trata da morte de maneira leve e divertida. Além disso, os cenários e o figurino cumprem a proposta de representar uma família de classe média baixa do Irajá, como a família de Ruço, o que confere certa verossimilhança ao seriado. O enredo, por sua vez, traz situações muitas vezes absurdas e improváveis, além de os personagens serem compostos de maneira excêntrica, o que corrobora a proposta do seriado – tratar da morte – que é, por si só, singular.

Já em relação ao plano do conteúdo, o indicador diversidade de sujeitos representados foi o de maior destaque, obtendo avaliação muito boa em todas as emissões analisadas. Podem-se encontrar os mais diversos tipos de personagens, dentre lésbicas, travestis e negros. Tais representações são raramente retratadas em outros seriados de televisão; ainda menos todas essas representações juntas.

A ampliação do horizonte do público também obteve destaque dentro da produção, com três emissões boas e duas muito boas em relação ao indicador. Em todos os episódios é possível perceber uma reflexão – muitas vezes profunda – acerca de assuntos rotineiros e questões pertinentes, em maior ou menor grau. No episódio A Surpresa do Inesperado, Juscelino, empregado da funerária e amigo da família, dispara após uma reflexão: “O foco não está no caminho, está no caminhar”. Ao final dos episódios também é comum uma conversa, geralmente entre Ruço e Darlene, que sintetize uma reflexão a respeito das dificuldades e das situações que os personagens passaram durante o episódio. Críticas sutis também podem ser percebidas, como no episódio Seria Cômico Se Não Fosse Sério, quando Darlene diz a Alessanderson: “Ela vai te jogar no mundo do crime!”. O menino responde: “Pra uma carreira política isso conta como especialização”.

O episódio A Virgem do Irajá, que recebeu avaliação boa no indicador, trata, principalmente, do preconceito. Ruço diz sobre a relação de Odete Roitman com Tamanco, noiva de Odete: “Eu não aceito, no fundo eu não aceito. Fingi que aceito (…)”. Alessanderson ainda complementa: “O preconceito é a gasolina do mundo, infelizmente”. A atitude de Ruço perante o noivado da filha é contestada por todos, que o incentivam a aceitá-lo.

O episódio Quero Morrer no Carnaval, que recebeu avaliação muito boa, também trata do preconceito, mas com um enfoque um pouco diferente. Ruço recebe o corpo de uma travesti para enterrar e decide enterrá-la como homem, despindo-a. A mãe dela, ao encontrá-la como homem, indaga Ruço o motivo de ele ter feito aquilo e, por fim, diz: “Ele não se via como homem, não se gostava como homem. Então eu entendi e aceitei”. Preta Gil, que interpreta ela mesma no episódio, concorda com a mulher e complementa: “Se a sua filha era Gisele no plano físico, então ela também vai ser Gisele no plano astral. Diversidade até na morte!”.

Entretanto, o indicador desconstrução de estereótipos não obteve o mesmo destaque, recebendo avaliação fraca em todas as emissões. Os personagens, embora diversos, são representados, em grande parte das vezes, de forma caricatural ou exagerada. É o caso de Tamanco, a mecânica lésbica e masculinizada.

O indicador oportunidade teve avaliação razoável em quatro emissões analisadas devido ao fato de abarcar assuntos passíveis à vida de qualquer pessoa (ainda que a temática central seja a morte), incluindo problemas e questionamentos cotidianos que não estão necessariamente na agenda midiática. A exceção foi o episódio Quero Morrer no Carnaval, ambientado durante o carnaval e exibido em fevereiro – justamente a época da festividade, a qual era pauta tanto da agenda do público quanto da agenda da mídia.

Abaixo, os indicadores de qualidade do plano do conteúdo para cada episódio:

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Já quanto à mensagem audiovisual, o indicador diálogo com/entre plataformas obteve avaliação boa em quatro emissões e muito boa em uma. É recorrente nos episódios a menção a lugares reais, como Ceará, Bolívia e o próprio Irajá. A menção a programas, personalidades e situações reais também é comum. No episódio Seria Cômico Se Não Fosse Sério, Ruço, em referência à novela Salve Jorge, que passava à época da transmissão, diz: “Ainda mais agora com essa história da Cláudia Raia levar essas mulheres pra… Onde mesmo? Qual é o nome do lugar?”. Já no episódio O Morto de Chinó, Ruço responde a Luz Divina: “Sabe o que tu vai receber? Nada, nada, nada, nada.”, em referência a uma música que viralizou no YouTube na época.

O episódio A Surpresa do Inesperado recebeu avaliação muito boa no indicador porque, além de referências a elementos da realidade, faz uma espécie de releitura de cenas do filme Psicose, de Alfred Hitchcock. Ruço tem pesadelos e encontra Luz Divina no porão, de costas e sentada em uma cadeira. Ao virá-la, descobre que ela é um esqueleto e, nesse momento, Floriano aparece vestido de mulher e tenta matar Ruço a facadas, mas Juscelino o impede. Esse pesadelo é uma releitura da cena de Psicose onde Lila Crane descobre o esqueleto de Norma Bates sentado em uma cadeira no porão e Norman Bates, com as vestes de sua mãe, tenta matá-la, mas é impedido por Sam Loomis.

O indicador clareza da proposta, por sua vez, recebeu avaliação muito boa em todas as emissões, já que o formato do programa é nítido e não deixa dúvidas ao espectador. Do mesmo modo, a proposta do seriado também se faz clara ao público. Já em relação ao indicador originalidade/criatividade, Pé na Cova recebeu avaliação boa em todas as emissões. O diferencial do programa é a sua proposta inovadora de apresentar como tema a morte, mas de uma forma leve e descontraída.

Contudo, o indicador solicitação da participação ativa do público obteve avaliação fraca em todas as emissões, uma vez que poucos recursos são utilizados para estimular o espectador a participar de forma mais ativa do programa. A linguagem simples e informal, entendida facilmente, é um dos poucos fatores que aproximam o seriado do espectador. As menções a elementos da cultura popular, as quais também incrementam o diálogo com/entre plataformas, podem ser consideradas outro fator de aproximação. A seguir, os indicadores de qualidade da mensagem audiovisual, com as suas respectivas avaliações:

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A partir da análise, pôde-se observar que Pé na Cova apresenta características do humor de qualidade, considerado aquele capaz de levar o público à reflexão e ao debate de ideias, trazendo temas férteis e relevantes à pauta do espectador. Dentro dessa análise, foram essenciais as boas avaliações no indicador ampliação do horizonte do público, marcado pelas reflexões e questionamentos das personagens a respeito da vida e de assuntos rotineiros, tratados através de situações improváveis e de personagens excêntricos.

O programa também se destaca pela temática que traz – a morte – de forma leve e descontraída, sendo capaz de trabalhar com reflexões pertinentes sem que o espectador sinta o “peso” dos assuntos tratados. Entretanto, não somente a reflexão sobre a morte é trabalhada, mas também sobre diversos outros assuntos relevantes.

Por Júlia Garcia Gouvêa Andrade

Observatório da Qualidade no Audiovisual

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