Por Gustavo Furtuoso
No ano em que a Coca-cola alcançou a marca de um século de campanhas natalinas, o mundo foi acometido pela pandemia da COVID-19. O Papai Noel de roupas brancas e vermelhas, o Pólo-Norte nevoso e o caminhão iluminado, alguns dos símbolos tradicionais da marca para o feriado, tiveram que ser usados de forma mais cautelosa em sua publicidade, visto que o Natal de 2020 seria diferente de todos os outros. Figurando como uma das marcas mais valiosas do planeta, a Coca-Cola não poupou esforços: lançou uma campanha internacional veiculada em mais de 90 países, e reivindicou outra vez o afeto de pessoas em todo mundo ao associar-se ao espírito e à magia da data.
Em 1920, quando a primeira campanha de Natal da empresa foi divulgada, a Coca-Cola tinha como produto apenas o refrigerante, primeiro passo numa trajetória de sucesso que culminaria com um império de mais de 500 marcas em 200 países. Sediada nos Estados Unidos, o produto teve bastante aceitação na sociedade da época, principalmente devido à sua ação refrescante, que fazia do verão e do calor períodos oportunos para as vendas. O mesmo não se podia dizer do inverno. Então, com a intenção de alavancar seus lucros também durante a estação mais fria do ano, a marca passou a investir em campanhas natalinas (ISRAEL, 2011).
Em 1930, surge uma das representações mais emblemáticas do Natal Coca-Cola, presente no imaginário de crianças e adultos no planeta inteiro. O artista Fred Mizen pinta um homem vestido de Papai-Noel tomando uma Coca-Cola numa loja de departamentos. A imagem foi replicada em diversos anúncios e obteve bastante sucesso. Entretanto, o executivo Archie Lee pediu que os futuros anúncios trouxessem não um homem vestido como Papai-Noel, mas uma figura simbólica e que refletisse a mitologia em volta do personagem. (ISRAEL, 2011). O ilustrador Haddon Sundblom foi o responsável pela criação da figura rechonchuda, com barba branca e olhar doce que ficou mundialmente conhecida nos anúncios da marca.
Representação do Papai Noel pela marca a partir da década de 1930, com os traços de Sundblom que ficaram mundialmente conhecidos. Fonte: The Coca-Cola Company
Baseado na história de São Nicolau, a partir desse momento o Papai-Noel adquire novas características. A roupa vermelha e branca – cores da Coca-Cola – tornou-se sua vestimenta tradicional e, em muitos países, as cores do Natal. O uso de uma figura mágica como essa atende aos anseios da marca em criar uma data com aura de fantasia, adorada pelas crianças.
Considerando que “a mitologia tem muito a ver com os estágios da vida, as cerimônias de iniciação, quando você passa da infância para as responsabilidades do adulto” (CAMPBELL, 1988, p.13), a crença no Papai-Noel articula imaginários importantes na sociedade. Desassociado da origem religiosa, de acordo com Lévi-Strauss (2008), o Papai-Noel não é um mito ou lenda pois não tem uma narrativa que conte de sua origem ou a relacione com algum fato histórico. Ele pertence à categoria das divindades, mas uma divindade diferente. As crianças lhe devotam cartas, fazem pedidos nos quais os bons são recompensados, os maus não. Os adultos não partilham desse ritual. Sendo assim, é uma divindade etária, pois apenas as crianças creem nele, separando-as dos demais.
O imaginário relacionado ao Natal acabou tradicionalmente ligado à Coca-Cola devido à apropriação da marca de símbolos como a neve, o urso polar e o caminhão cheio de luzes dirigido pelo Papai Noel em suas campanhas. De fato, há diversos países em que as tradições, cores e mitologia da época foram moldadas por suas peças publicitárias. Ao incorporar e divulgar essa fantasia, a Coca-Cola conseguiu associar-se a este feriado, que é a data mais importante para o comércio no Brasil. Isso se soma à máxima vendida pela empresa e presente em seu slogan “abra a felicidade”. Ao estar presente no Natal, o refrigerante mais uma vez endossa sua capacidade de agregar pessoas para compartilhar momentos felizes.
Com toda essa tradição publicitária relacionada à data, era de se esperar que no ano em que se celebra um século de seu primeiro anúncio natalino, a Coca-Cola faria uma campanha comovente e memorável. O desafio, entretanto, estava nas dificuldades que o ano de 2020 trouxe para todo o mundo. A pandemia da COVID-19 e o isolamento social forçaram a adaptação de muitas atividades humanas para o novo contexto, as relações interpessoais de trabalho, família e amigos em grande parte migraram para o ambiente virtual, o distanciamento físico passou a ser a forma principal do convívio. Além disso, são tempos tensos e de incerteza sobre o futuro.
Assim, a Coca-Cola, que trabalhou ao longo de décadas construindo uma aura mágica e de fantasia para essa época do ano, teve que incorporar novos sentimentos e preocupações à sua narrativa. Como explica Marina Rocha, diretora de marketing da Coca-Cola Brasil, “2020 está sendo um ano em que tudo precisou ser repensado e, consequentemente, reinventado.”
Mesmo as Caravanas de Natal realizadas anualmente no Brasil tiveram de ser adaptadas para o novo contexto, sem interação das crianças com o Papai-Noel e com recados em vídeo transmitidos pelo tradicional caminhão vermelho. “Sabemos da importância das Caravanas de Natal e da magia de tocar a memória afetiva de milhões de brasileiros. Por isso, mesmo com todas as incertezas, não poderíamos deixar de realizá-las”, Marina completa.
Percebe-se que para a empresa é fundamental manter ativa essa relação da marca com a fantasia nesse momento de fim de ano. Para o território nacional, além das caravanas, a campanha natalina firmou-se sobre três pilares principais: um curta-metragem internacional divulgado em todos os países onde a Coca-Cola está presente, uma peça documental nacional e o relançamento do jingle “O Natal vem vindo”, nas vozes de Luísa Sonza e Lellê.
Esta análise irá focar nas dimensões fílmica e promocional (ANEAS, 2013) nas campanhas de Natal nacional e internacional da Coca-Cola, sob a perspectiva da literacia midiática. Serão observados, em maior ou menor grau, os indicadores linguagem, estética, processos de produção, processos de interação, e ideologia e valores (FERRÉS; PISCITELLI, 2015).
O curta-metragem A carta faz parte da campanha internacional de Natal, dirigido por Taika Waititi (vencedor no Oscar 2020 com o filme Jojo Rabbit). O vídeo foi desenvolvido pela agência Wieden & Kennedy, de Londres, e celebra os 100 anos de publicidade natalina da marca através da história de um pai que enfrenta distâncias e intempéries para entregar os desejos de sua filha ao Papai-Noel.
De acordo com o site internacional da Coca-Cola, o processo de produção do curta foi feito em cinco dias durante o mês de agosto, na Nova Zelândia, país do diretor Waititi. Foram utilizados apenas profissionais e atores locais, eliminando a necessidade de viagens internacionais, além de seguirem todos os protocolos de segurança para a COVID-19. A peça foi disponibilizada em mais de 90 países – o maior número para uma campanha de Natal da empresa – em seu tamanho original (2:30) e também em edições de 60, 30 e 20 segundos, para diferentes plataformas. Com uma distribuição tão grande, a marca explicita sua intenção de criar um discurso agregador, apresentando seus votos e refletindo os anseios de seus consumidores numa escala global, além de solidificar sua presença como uma empresa internacional.
O filme conta a história de um pai que precisa trabalhar embarcado e se despede de sua filha, que lhe entrega uma carta para o Papai Noel. Tempos depois, em uma plataforma no meio do oceano, ele encontra a carta e percebe que não a encaminhou a seu destinatário. Então, o protagonista atravessa o mundo em diferentes cenários, de rios e florestas a montanhas e geleiras, até chegar ao Polo Norte, onde encontra a casa do bom velhinho fechada para o Natal. Frustrado, ele leva um susto quando o caminhão da Coca-Cola para perto dele e o próprio Papai-Noel oferece uma carona de volta para casa. Ao chegar lá, recebe de volta a carta de sua filha e ao abri-la, vê que seu desejo era que o pai estivesse em casa naquela noite.
Reiterando aspectos de sua identidade visual, a paleta de cores é trabalhada com destaques para o vermelho e o branco, em especial nas roupas dos protagonistas e no carro da família. Além de permear a peça com as cores do Natal – e consequentemente da Coca-Cola – o posicionamento do produto é feito de maneira destacada. O momento em que o pai da garota faz uma pausa para seu lanche e encontra a carta acontece segundos depois de ele tirar uma garrafa da bolsa e tomar um pouco do refrigerante, abrindo um sorriso logo em seguida, reiterando o slogan ‘’abra a felicidade’’.
Devido ao local de trabalho do pai ser numa plataforma no oceano, aborda-se, de maneira sútil, a questão do isolamento e distanciamento que foram realidade para todos nós durante a pandemia. As paisagens e distâncias que ele percorre depois para entregar a carta da filha ao Papai Noel também podem ser compreendidas como metáforas dos desafios e dificuldades que tivemos que enfrentar em 2020, que definitivamente não foi um ano fácil.
A marca busca refletir sobre a vivência de seus consumidores para que possa integrar os sentimentos e vontades da população à sua narrativa. Como coloca Poliana Souza, vice-presidente de marketing da empresa no Brasil, “toda a campanha de Coca-Cola nasce de uma verdade do consumidor. A gente sempre busca entender como o público se comporta e o que ele tem feito. A partir disso, encontramos qual a melhor forma da marca se encaixar nesse comportamento de forma relevante.”
Sendo assim, num ano em que tivemos que ficar distantes uns dos outros, sem contato físico e sem reuniões entre familiares e amigos, o que as pessoas mais desejavam, em todo mundo, era essa possibilidade de estar perto de novo. Desejo esse expresso na carta que a garota destina ao Papai Noel. Percebemos que, por mais que seu pai tenha feito grandes esforços para chegar ao Polo Norte, tudo que ela queria era que ele voltasse para casa. E ele volta, de carona no Caminhão da Coca-Cola, trazido pelo bom velhinho de Sundblom. Assim, a marca deixa uma mensagem de que estar junto daqueles que se ama é o que mais importa e a bebida também se faz presente selando e mesmo propiciando esses momentos de alegria compartilhada.
Eficiente em tocar os sentimentos e imaginário de seu público, o curta “A Carta” teve bons resultados no Brasil, pelo que se percebe a partir dos comentários sobre ele nas redes sociais e no próprio Youtube. Muitos usuários relataram terem se emocionado ao assisti-lo, compartilharam histórias pessoais e parabenizaram a Coca-Cola pelos comerciais que tradicionalmente faz todos os anos. O sucesso da campanha em nosso país pode ser percebido ainda no número de visualizações do vídeo em português: 42 milhões no Youtube. Muito mais que a quantidade acumulada nos vídeos em inglês (8,1 milhões) ou espanhol (7,1 milhões), por exemplo.
Comentário do Youtube (Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m6fAyb0X9eI, acesso em 27 de janeiro de 2021)
Já o curta Juntos Como Nunca Neste Natal, foi feito em território nacional especificamente para o público brasileiro. A peça mostra a passagem da Caravana de Natal da Coca-Cola em um vilarejo de Belém de Maria, no interior de Pernambuco. As caravanas são ações já tradicionais da empresa em solo brasileiro, passando por diversas cidades. Nelas, os caminhões da Coca-Cola levam muito mais que as luzes e canções da época, levam a “magia do Natal”.
Durante a montagem e captação das imagens, de acordo com o próprio vídeo, foram respeitados rigorosamente todos os cuidados de higiene e segurança recomendados pelas autoridades de saúde contra à Covid-19. O vídeo reúne relatos documentais sobre os moradores do vilarejo, sua relação com o local e a importância das tradições de Natal para suas famílias. Mesmo no interior do Nordeste, onde o período da festividade nada tem a ver com o inverno gelado e branco de neve do hemisfério norte, as crianças descrevem o Papai Noel como a figura ilustrada por Sundblom.
Após os relatos iniciais das crianças e de uma mãe cuja filha não poderá visitá-la em virtude da pandemia, corta-se para cenas noturnas em que as ruas se iluminam com inúmeras cores e luzes. A Coca-Cola levou diversos pisca-piscas, decorações típicas e uma árvore de Natal para o vilarejo, além de deixar cestas de Natal nas portas de todos os moradores, que contaram nunca terem vivenciado uma experiência daquela. Dessa forma, mesmo em populações mais isoladas no interior do país, a empresa consegue se fazer presente e passar a magia do Natal, que se associa com os sentimentos de alegria promovidos pela marca e, consequentemente, com a própria Coca-Cola. Com essa narrativa, ela se coloca como agente ativo e, mais que isso, como protagonista no ato de levar a fantasia da data a todos, mesmo aos mais humildes.
No início do vídeo, a ambientação em nada remete a um vídeo natalino. Sol forte, estradas de terra e criação de animais de fazenda situam o espectador sobre o local em que se passa os acontecimentos. Em certa medida, relembra um pouco da origem do Natal cristão, em que Jesus nasceu num estábulo, cercado de animais. Mas este não é o Natal da Coca-Cola. Com a passagem do dia para a noite, as luzes levadas pela empresa criam a caracterização do lugarejo como uma festa “tradicionalmente” natalina. É uma forma de mostrar a transformação promovida pela Coca-Cola e, mais que isso, uma forma de aquecer no imaginário daquelas crianças a mitologia do Papai-Noel como um bom velhinho do Pólo Norte que entrega presentes àqueles que tiveram bom comportamento.
Como a estética do Natal não é compatível com a estação de verão que vigora no Brasil, a Coca-Cola aproveitou a oportunidade de fazer um filme que tratasse especificamente da experiência nacional. Nas redes sociais e comentários do vídeo no Youtube, as pessoas elogiaram a empresa pela iniciativa e por homenagear a região nordeste em sua campanha. Além disso, ainda houve o lançamento de um filtro da marca no Instagram e um aplicativo de realidade aumentada através do qual era possível interagir com a caravana dos caminhões de forma virtual e ouvir o jingle deste ano, o que aumentou a possibilidade de engajamento dos consumidores.
Comentário do Youtube (Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m6fAyb0X9eI, acesso em 27 de janeiro de 2021)
Tanto o curta “A Carta” quanto o vídeo feito para o mercado nacional utilizam de uma tipologia de linguagem narrativa. Embora uma seja ficção e a outra documental, ambas estabelecem personagens, conflitos, clímax e desfecho. As duas apelam mais à emoção que à razão. A presença da trilha sonora, o cuidado na direção de arte e a fotografia são elementos em “A Carta” que ajudam a envolver o espectador e suscitar nele sentimentos ao assistir a história. No curta “Juntos como nunca neste Natal”, apesar de termos uma contextualização e explicações de causa e efeito, como a menção à personagem que não pode voltar à cidade no fim do ano devido à pandemia, a escolha dos relatos, a trilha sonora e os enquadramentos utilizados reforçam a intenção de um apelo maior à emoção do espectador.
Incorporando traços da cultura norte-americana e também elementos próprios da marca na simbologia da data, a Coca-Cola busca perpetuar o Natal como uma época de alegria e confraternização, mas também de consumo, de entrega de presentes. Com uma publicidade altamente sugestiva e que coloca o produto em destaque, as peças possuem um apelo de vendas mesmo que não seja o foco principal da narrativa. Entretanto, ao unirem as duas estratégias, criam um vínculo afetivo e uma memória imagética muito forte. A Coca-Cola é uma das marcas comerciais mais notáveis na sociedade capitalista, mas sua relevância supera as relações de consumo, tendo impacto cultural em diversas partes do globo.
Na campanha que marcou um século de publicidade natalina, a Coca-Cola foi protagonista. Nas duas narrativas, ela é responsável por levar à magia e concretizar os desejos das personagens. Mesmo em tempos pandêmicos, a marca “salvou” o Natal. Em ambas, a figura do Papai Noel criada pela marca é central, é ele quem leva os presentes. No curta documental, o bom velhinho é feito de carne e osso, fantasiado, e age sem que ninguém o veja, assim como acontece habitualmente em nossas festas familiares e eventos comerciais. Já no curta ficcional, o Papai Noel se apresenta como uma divindade, um ser que mora no Polo Norte e que uma vez ao ano viaja o mundo para espalhar a alegria do Natal.
Por mais que tenha sido um ano desafiador, em 2020 a publicidade escolhida pela empresa enfatiza que com determinação somos capazes de superar nossos obstáculos: seja através da metáfora do pai que atravessa os cenários mais inóspitos para realizar o desejo de sua filha ou através da história produzida pela marca em um ambiente real de um vilarejo isolado. Mesmo com todas as dificuldades em decorrência do coronavírus, foram enredos de natais felizes – graças à Coca-Cola. Mais uma vez, a marca se mostra presente em todo o planeta, do Polo Norte ao interior de Pernambuco, capaz de semear a alegria e propiciar momentos de confraternização. Mas, principalmente, de levar uma magia por ela mesma criada e cuja perpetuação enquanto manifestação cultural na sociedade reforça a sua presença em nossa memória afetiva.
Referências
ANEAS, T. Premissas para aplicação de análise fílmica à publicidade audiovisual: um exercício analítico de Always a Woman. Cadernos de comunicação, v.17, n.18, jan-jun 2013. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/ccomunicacao/article/view/10896 . Acesso em: 31 ago. 2020.
CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. 1 ed. São Paulo: Palas Athena, 1990
FERRÉS, J.; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, v. 9, n. 1, 30 jun. 2015. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/21183/11521. Acesso em: 31 ago. 2020.
ISRAEL, Mariana Moreira. Feliz Natal com Coca-Cola: o Papai Noel como Identidade de Marca – Rio de Janeiro; UFRJ/ECO, 2011.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O Suplício do Papai Noel. 1 ed. São Paulo: Cosac Naif, 2008.
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