Observatório da Qualidade no Audiovisual

Natal Natura na pandemia: uma retrospectiva sobre as belezas e dificuldades de 2020

Por Luma Perobeli

Diferente do Natal de frio e flocos de neve propagado pelo Papai Noel de roupas vermelhas, o feriado brasileiro ocorre no verão quente e úmido de um país tropical. Nas duas tradições a data é marcada por compras e trocas de presente entre amigos e familiares. Na atual situação, entretanto, as consequências do Coronavírus geraram contornos dramáticos à economia mundial. A publicidade, principal elo de comunicação entre marcas e consumidores, acompanhou as limitações impostas pela doença, como observamos ao longo de 2020 aqui no projeto Publicidade e Pandemia.

No Dia das Mães, vimos refletir diretamente as mudanças decorrentes do isolamento social, ainda muito forte no final de abril e início de maio. O momento ainda era o de entender e conhecer a doença, de se adaptar às mudanças repentinas. No período próximo à celebração do Dia dos Pais – final de julho e início de agosto – a doença se espalhava e o número de infectados aumentava, mas as medidas de contenção social se tornavam cada vez mais flexíveis. Naquela ocasião, a pandemia foi muitas vezes inserida na publicidade de forma indireta, incorporada ao dia a dia do consumidor, agora mais adaptado e conformado com a situação.

Já em novembro e dezembro, promessas da chegada da vacina no Brasil se intensificaram e o sentimento de esperança que existe naturalmente nas pessoas nessa época do ano, aumentou. O final de 2020 precedia o desejo de um ano melhor, de um 2021 com vacina e sem doença. Nesse contexto, nosso objetivo é analisar a publicidade natalina da Natura para buscar pistas sobre o comportamento da marca diante de seu público-alvo. Para isso, nesta análise vamos nos guiar pelas dimensões propostas por Ferrés e Piscitelli (2015) para o desenvolvimento de competências midiáticas. Estética, Linguagem e Ideologia e Valores são arestas que vão nos levar a olhar com mais atenção os muitos elementos que compõem um conteúdo midiático.

Com criação da Agência Africa, produção de imagem da MYMAMA Entertainment e direção da dupla Andre Saito e Cesar Nery, o comercial do último Natal da Natura teve sua estreia em 28 de novembro de 2020. Três versões do filme “Um Presente pro Mundo”, com imagens, falas e tempos ligeiramente diferentes foram encontradas. Neste texto, analisaremos a versão comercial de 2min, veiculada na TV aberta, fechada e nos canais digitais da marca.

A versão original está presente no site da produtora e tem 2min44 de duração. Há, ainda, a versão simplificada, publicada um dia antes do Natal no canal oficial da marca no YouTube, com 1min de duração. Em todas as versões, cenas comuns da pandemia e momentos marcantes de 2020 são mostrados, enquanto uma mulher narra uma mensagem de como o ano foi difícil e de como ela é grata às pessoas que ajudaram a melhorá-lo.

A música que entoa a produção natalina é uma releitura de “Clube da Esquina 2”, canção lançada em 1972 pelo grupo mineiro Clube da Esquina, formado em Belo Horizonte por Milton Nascimento,Lô Borges e Márcio Borges. A canção é interpretada por Luê, cantora paraense de MPB. Além da representatividade regional simbolizada pelos músicos, o norte do país também complementa a integração por meio das imagens dos povos tradicionais e pela lembrança das queimadas na Amazônia.

Os valores que a peça tentou transmitir aos espectadores foi o de gratidão, respeito e importância de ações por um mundo melhor. Para isso, optou pela tipologia de linguagem narrativa, estratégia que “conta uma história” para envolver e criar um vínculo afetivo do receptor com o produto – ou, como neste caso, com a marca. A personagem que narra o texto torna-se a personificação da empresa, como se fosse a Natura contando 2020 sob a sua perspectiva.

Na peça, um horizonte marcado por céu, mar, sons de pássaros e águas trazem a sensação de calmaria. “E lá se vai mais um dia”, em uma voz que canta, dá a ideia de vitória a cada dia terminado, vitória que supõe a dificuldade dos dias vividos. A narração começa e confirma os desafios deste período de pandemia: “Esse ano testou a gente de todas as maneiras possíveis. E eu tenho total consciência de que sem essa pessoa, teria sido muito difícil”. Aqui, o sentimento de gratidão é introduzido e, junto a ele, duas percepções podem complementar o entendimento do espectador: a noção de que, apesar das dificuldades, pessoas merecem reconhecimento; e também a ideia de responsabilidade individual sobre o coletivo, uma vez que a peça sugere que atitudes individuais “salvaram” o ano.

A seguir, personagens tocam violino e sanfona das sacadas de suas casas, fazendo referência a uma prática vista no início do isolamento social. A narração continua: ”Se respeitar quando o mundo está de cabeça para baixo, é muito complicado”. Essa parte é ouvida ao mesmo tempo em que dois homens se abraçam e um diz para o outro “eu me caso aqui”. Frase e imagem se complementam para fazer um contraponto aos inflamados discursos homofóbicos e conservadores que se tornaram comuns em personalidades importantes do país e que acabam acirrando a intolerância entre as pessoas.

Após, a voz da cantora entoa um conjunto de sons silábicos e repetitivos. Isso embala e conduz o espectador à narrativa que está sendo contada. A narração ”Mas ver alguém fazendo isso, é muito, muito bonito” se refere ao respeito mencionado na frase anterior, dado como atitude complicada – e até arriscada – de se fazer num contexto de desrespeito geral e “de cabeça para baixo”. Aqui, há a ideia de que essas pessoas são valiosas porque fizeram o difícil e enfrentaram o complicado para fazer o bem. Na sequência, o respeito ao amor é concretizado com a celebração do casamento dos dois homens, transmitido por vídeo aos convidados, situação também familiar ao momento de distanciamento social.

A narração continua, agora fazendo alusão ao reconhecimento aos profissionais da saúde – ”É o tipo de pessoa que defende até quem ela não conhece” – e aos que se doaram no combate aos incêndios na Amazônia – “Que cuida de tudo aquilo que tem de mais precioso para o futuro da gente”. Destes reconhecimentos, a lembrança do passado recente pode levar o espectador à reflexão crítica sobre os agentes do país que pouco fizeram para defender a população e a natureza.

Em seguida, “Esse ano tentou acabar com a gente” evidencia a gravidade dos acontecimentos para poder enaltecer o valor desse tipo de pessoa homenageada no texto. A frase gera identificação direta em quem assiste, colocando a personagem (“eu”) sendo empática ao receptor (“você”) e se igualando a ele no momento de dor. Imagens de mães e pais com seus filhos corroboram com o cuidado e carinho mútuo que supostamente prevaleceu entre essas pessoas: “Mas saber que eu tinha com quem contar, fez toda a diferença”.

As cenas das pessoas tocando instrumentos em suas varandas, celebrações à distância, profissionais de saúde esgotados e pais e mães com seus filhos, aliadas à narração de fundo, remetem ao período de pandemia. Isso, claro, se o espectador estiver atento ao momento presente para fazer essa relação das imagens com o mundo real, ainda que o uso de máscara – talvez o maior símbolo midiático da doença – só aparecesse em dois momentos do filme. Imagens como essas contribuem para a consciência da importância dos efeitos visuais na construção de um produto. Ainda que não houvesse a narração de fundo, seria perfeitamente possível identificar que nelas havia referências ao atual momento vivido por quem assiste, uma vez que refletem atitudes e práticas do cotidiano do convívio com a Covid-19.

A essa altura da peça, os valores de gratidão e respeito são explícitos na mensagem e combinam com o restante do filme para a construção do valor da importância de ações por um mundo melhor. A frase “Meu presente de Natal vai para quem sonhou com um mundo melhor”, acompanhada das imagens de um menino que recolhe lixo na beira do mar, fazendo o bem, portanto, para a natureza (e não somente para os seus familiares), contribui para a consolidação dessa ideologia que a peça deseja transmitir, da importância das ações. Entretanto, para o espectador atento às problemáticas sociais abordadas, a compreensão do filme não vai passar pela responsabilização individual das pessoas como esta última cena deseja rematar.

Ao final, a canção anuncia “e sonhos não envelhecem”, trazendo a ideia de esperança e continuidade de um mundo vivido de desejos e atitudes. A mulher que narrou a história aparece em cena e descobrimos se tratar de um amigo-oculto, tradicional brincadeira de troca de presentes no fim do ano. Ela aponta um embrulho para a câmera, sugerindo o reconhecimento em forma de presente Natura à pessoa que se envolveu e se identificou com a mensagem, presumindo que ela também tenha agido por um mundo melhor: “Enfim, meu presente é para você”. A homenagem, portanto, é para cada um de nós, numa maneira de diferenciar e dar destaque ao consumidor da marca, fazendo-o se sentir especial. Uma voz off encerra o vídeo, sintetizando a mensagem transmitida: “Natal Natura. Em cada presente o nosso sonho de um mundo mais bonito”.

Como tem sido recorrente na publicidade da empresa, a campanha do Natal 2020 apostou na diversidade social, cultural, racial, étnica, de gênero e sexual dos personagens, buscando refletir a pluralidade que compõe o Brasil. Os slogans “o mundo é mais bonito com você”, “por um mundo mais bonito” e “cada pessoa é um mundo e todo mundo importa”, usado nos canais digitais e nas principais ações da marca, demonstram a tentativa de associá-la a ideais conectados à valorização da natureza e do indivíduo e de ambos dentro do todo, parte do “mundo”. E isso inclui, por exemplo, dar espaço a grupos historicamente discriminados, como negros, LGBTQIA+ ou fora dos padrões midiáticos de beleza.

Esta atitude está ligada ao posicionamento de significativa parcela da sociedade, que promove a diversidade e cobra atitudes inclusivas – seja do mercado, da cultura, do governo ou da sociedade civil. Essa escolha da marca mostra que ela está sintonizada com os valores do seu tempo, com os valores de uma parcela significativa da sociedade e que assumiu uma posição “para vencer” a batalha pelas mentes dos consumidores, ainda que para isso colecione alguns inimigos. “Hoje, na arena de produtos e na arena política, você tem de assumir uma posição. Há demasiados concorrentes lá fora. Você não pode vencer sem fazer inimigos e querendo ser tudo para todo mundo” (Ries; Trout, 2009, p. 72).

Uma vez posicionada politicamente, a marca tenta atingir o seu público falando de questões mais amplas e gerais, consensos sociais que atinjam o maior número de pessoas. No caso da campanha em análise, a preocupação central do filme é demonstrar empatia diante da angústia compartilhada por muitos no último ano e não necessariamente vender um produto em específico. Assim, o apelo emocional foi usado para propagar uma ideia e para reforçar a imagem da marca junto aos seus consumidores.

A melodia interpretada reforça o principal apelo da publicidade, que indiretamente estimula a compra de presentes Natura, “presentes que simbolizam o sonho de um mundo melhor”. Indiretamente, porque, apesar de logo, slogan e site aparecerem em algum momento do filme, o objetivo não é anunciar um determinado item, mas transmitir uma mensagem que toque e sensibilize o espectador, para que ele seja levado pelas emoções e identificação com os valores a consumir seus produtos.

Segundo o estudo “Educar para los nuevos medios: competencia mediática para docentes”, do Grupo Comunicar, de 2020, um primeiro indicador da qualidade de uma publicação é a coerência com que tema, público e objetivo se apresentam. Partindo da temática de Natal exposta no vídeo e supondo que o seu objetivo é mexer com o sentimento e a lembrança de quem sofreu, de alguma forma, com os efeitos da pandemia de 2020, é possível afirmar que os elementos narrativos, expressivos, ideológicos e estéticos do filme foram construídos e combinados de forma a possibilitar emoção e reflexão no espectador.

Desta reflexão, o respeito ao próximo pode ser despertado no público – como no reconhecimento aos profissionais da saúde e a quem cumpriu o isolamento – e também questionamentos e críticas ao período pandêmico. No filme, o espectador é suscitado a revisitar polêmicas atuais (como o relacionamento homoafetivo), momentos marcantes de 2020 (como o pior incêndio florestal da história do país) e também problemáticas sociais acentuadas nos últimos anos (como o desrespeito aos povos tradicionais). Em resumo, símbolos do ano que passou para contrastar belezas e dificuldades de 2020. Na peça, para cada beleza há o estímulo ao consumo de produtos Natura; e para cada dificuldade, a possibilidade de olhares críticos sobre temas que permeiam o país.

Referências

FERRÉS, J.; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, v. 9, n. 1, 30 jun. 2015. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/21183/11521.

Educar para los nuevos medios: competencia mediática para docentes. Miriadax, Online, 2020. Disponível em: <https://miriadax.net/web/educar-para-los-nuevos-medios-competencia-mediatica-para-docentes>. Acesso em: 19 jan. 2021.

RIES, A.; TROUT, J. Posicionamento: a Batalha por sua Mente. 1. ed. São Paulo: M. Books, 2009.

* Todas as imagens usadas nesta análise são capturas de tela.

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