Observatório da Qualidade no Audiovisual

Best Friends

Por Júlia Garcia

Baseada em Hana Yori Dango, Best Friends é uma fanfic escrita pelo interagente Yumesangai e publicada na plataforma Nyah! Fanfiction em julho de 2009. De acordo com as métricas do site, a história conta com 26 inserções em favoritos, 36 comentários e uma recomendação de leitura. Finalizada em capítulo único, a fic é uma narração one-shot de classificação etária livre, com quase 2.900 palavras. 

Yumesangai é membro da plataforma desde 2007 e, apesar de não constar no perfil, pode-se entender, mediante os pronomes utilizados nos comentários da fanfic, que o interagente se identifica com o gênero feminino. Yumesangai é autora de mais de 70 histórias, que variam de prosa a poesia, além de conteúdos originais, ou seja, que não foram baseados em nenhuma história, personalidade ou universo já existente. As fics mais recentes, no entanto, são inspiradas em bandas de k-pop, como BTS e EXO. Muitas das narrativas também são baseadas em animês, como Fullmetal Alchemist, Shingeki no Kyojin (Attack on Titan), Death Note e Sailor Moon. Dessa forma, percebe-se que a autora tem interesse em produções pop asiáticas. De acordo com Lopes et al. (2015, p.18) “[…] a distinção entre espectador e fã é feita através do grau e natureza do envolvimento com as narrativas televisivas por meio da produção de conteúdos, também chamado de trabalho dos fãs”. As práticas da cultura de fãs são amplas e abrangem distintos formatos, tais como fanarts, vídeos on crack e as fanfics. Nesse sentido, pode-se considerar Yumesangai pertencente ao fandom dessas produções, ou seja, integra um grupo de fãs específico. Contudo, a autora não somente trabalha com narrativas inspiradas na mídia pop asiática, mas também em produções estadunidenses, como Os Vingadores e Teen Wolf, por exemplo.

Nesse contexto, é interessante pontuar que, na descrição do perfil, Yumesangai afirma que pode ser chamada de Yume e, para assinar o texto de apresentação, utiliza o kanji 夢 (lê-se, justamente, “yume”), que significa “sonho”. Isso indica a familiaridade da autora com a língua japonesa. Fukunaga (2006) aponta relações entre o consumo de produções pop japonesas, em especial animês, e o aprendizado do idioma japonês, destacando, dentre outras observações, que os animês permitem o contato com o contexto cultural – o que, muitas vezes, falta na sala de aula convencional – e com diferentes formas de discurso, como o formal e o informal. Do mesmo modo, tal conhecimento da autora também dialoga com a dimensão dos processos de interação, indicando a “capacidade de apreciar as mensagens provenientes de outras culturas para o diálogo intercultural […]” (FERRÉS E PISCITELLI, 2015, p.11). Isso ainda pode ser observado no próprio gosto por produções asiáticas, que, em alguma medida, carregam marcas culturais. 

Ainda nessa dimensão, também é possível identificar a “capacidade de avaliar os efeitos cognitivos das emoções”, com “consciência das ideias e valores que se associam aos personagens” (FERRÉS E PISCITELLI, 2015, p.11), já que Yumesangai explicita que um dos seus principais objetivos é, justamente, fazer o leitor sentir o mesmo que os personagens. Essa identificação emocional está ligada, ainda, à dimensão da ideologia e valores, uma vez que permite que o leitor reconheça, nas situações fictícias, possibilidades para questionar condições referentes à própria realidade, seja ela pessoal ou social. Além disso, a autora estimula a troca de ideias e interação entre fãs, uma vez que respondeu a maioria dos comentários de Best Friends, agradecendo pela leitura, indicando outras produções e até estimulando a escrita de fanfics.

Ainda na descrição do perfil, Yumesangai utiliza, como título da apresentação, a frase “lasciate ogni speranza, voi che’entrate” (deixai toda a esperança, ó vós que entrais), trecho de Inferno, parte da Divina Comédia de Dante Alighieri. A intertextualidade feita pela autora já revela certa proficiência na dimensão da linguagem, pois, dentre outros indicadores, Ferrés e Piscitelli (2015, p.9) esperam “a capacidade de estabelecer relações entre textos, […] códigos e mídias”.

Figura 1: Perfil de Yumesangai na plataforma Nyah! Fanfiction

A partir das notas finais do capítulo e dos comentários respondidos por Yumesangai, é possível inferir que a história foi baseada em diversas produções envolvendo Hana Yori Dango. Originalmente, Hana Yori Dango começou como uma série de mangá publicada entre 1992 e 2003 na revista shōjo Margaret, voltada ao público infanto juvenil feminino. Ainda na década de 90, o mangá foi adaptado para a televisão, resultando em uma série de animê e em dois filmes, sendo um live action e o outro, animado. Os mangás inspiraram, ainda, a produção de dramas de TV em diferentes versões, dentre elas: Hana Yori Dango (Japão, 2005), Boys Over Flowers (Coreia do Sul, 2009) e Meteor Garden (Taiwan, 2001/China, 2018). 

Hanadan, como apelidou o fandom, conta a história de Tsukushi Makino, uma garota humilde que acaba confrontando os ricos e populares garotos do grupo Flower Four ao entrar na Eitoku Gakuen, uma escola cara e de prestígio no Japão. Embora entre em conflito com os meninos, Makino acaba se envolvendo em um triângulo amoroso com Tsukasa Doumyouji, líder do F4, e Rui Hanazawa, também membro do grupo e melhor amigo de Doumyouji.

Nas notas e comentários, Yumesangai afirma ter assistido ao animê e aos dramas japonês e coreano, além de ter lido os mangás. Dessa forma, como pontuado, a escrita da fanfic não se baseou exclusivamente em uma, mas em algumas versões de Hana Yori Dango. No entanto, os nomes utilizados pela autora são os japoneses, presentes no mangá, animê e dorama. Nas demais versões, os nomes são adaptados à cultura nacional e ao contexto da produção, se diferenciando, portanto, dos originais.

A narrativa de Best Friends foca em Makino e Rui, que, nas obras-fonte, não terminam como um casal, apesar da presença de interesse romântico entre os dois em certos momentos da história. Nas notas do autor, Yumesangai revela a preferência por Rui ao invés de Doumyouji, com quem Makino fica ao final de Hana Yori Dango. A autora utiliza, dessa forma, os potenciais – projeções sobre os acontecimentos pós-narrativa – para trabalhar o descontentamento com os rumos tomados pela narrativa cânone (JENKINS, 2012). No entanto, é interessante notar que, embora revele a preferência por Rui, a autora não transforma o garoto e Makino em um casal; Yumesangai mantém a relação de Makino e Doumyouji, mas aborda, com mais profundidade, a tensão romântica que permanece entre a menina e o amigo Rui.

Essa tensão é apresentada mediante um episódio entre Makino e Rui, que se dirige à casa da amiga para pedir um corte de cabelo. A história é narrada em primeira pessoa por Makino, ou seja, é possível ter acesso apenas aos sentimentos e visões da garota sobre o acontecimento. Apesar de focar majoritariamente nesses dois personagens, ao longo da fanfic Makino dá informações sobre o que teria acontecido após o final de Hana Yori Dango, incluindo o destino dos outros membros do grupo F4. É revelado, por exemplo, que Soujiro e Yuuki estão juntos, e que Akira e Sakurako estavam enfrentando problemas no relacionamento. Em relação à própria Makino, ela diz estar com Doumyouji e afirma que, “como uma erva daninha”, precisa crescer, por isso decidiu morar sozinha.

Jenkins (2012) pontua que a utilização, nas fanfics, de elementos-chave e diálogos presentes na obra cânone serve tanto como uma maneira de dar verossimilhança à história quanto como um modo de suportar a interpretação do fã sobre a narrativa e os personagens. Nesse contexto, ao utilizar o termo “erva daninha” – mencionado por Makino com frequência nas obras-fonte, em referência ao seu nome, “Tsukushi”, e à sua persistência – Yumesangai também apela para a identificação do fã, que reconhecerá o elemento, enriquecendo, portanto, a narrativa. 

É possível identificar, ainda, a presença de sementes, ou seja, “pedaços de informação introduzidos na narrativa para indicar um mundo maior que não é completamente desenvolvido na própria história” (JENKINS, 2012, p.16). O próprio aprofundamento na relação entre Makino e Rui, a qual, após o envolvimento da garota com Doumyouji, fica em segundo plano, pode ser considerado um recurso baseado em sementes. Mas, além disso, explora-se os sentimentos remanescentes de Rui em relação à Shizuka, com quem o relacionamento falhou. Isso é feito através de uma característica própria da cultura japonesa, baseada na linguagem. Makino sempre chama Rui pelo sobrenome, “Hanazawa”, o que denota respeito e certo distanciamento. Shizuka, ao invés disso, sempre se referia ao garoto pelo primeiro nome, “Rui”, revelando a intimidade entre os dois. Ao final da fanfic, Makino chama Rui pelo primeiro nome, o que tem impactos no garoto. Nas notas finais do capítulo, Yumesangai explica: “No momento em que ela o chama de ‘Rui’, a barreira que existia entre a Tsukushi (Makino) e o Rui é quebrada, essa barreira também chamada de Shizuka”. Jenkins (2012, p.14) enfatiza que, assim como feito por Yumesangai, “fãs normalmente usam Notas do Autor para explicar a relação de suas histórias com o texto fonte”.

Figura 2: Yumesangai complementa a história com informações sobre suas interpretações nas notas do capítulo

Esse mesmo recurso de linguagem é utilizado, de maneira sutil, para demonstrar que, mesmo estando em um relacionamento com Doumyouji, Makino ainda não se sente totalmente confortável com o namorado. Em um trecho da fanfic, Makino diz: “Eu já tenho um namorado. Muitas coisas aconteceram, e no final Doumyouji… Quero dizer, Tsukasa e eu viramos um casal”. O ímpeto de Makino é se referir ao namorado pelo sobrenome, revelando que ainda não há completa intimidade entre os dois, pelo menos por parte dela. Esse detalhe reforça, inclusive, a sugestão de que ainda há algum sentimento da garota por Rui. 

A  dimensão da linguagem proposta por Ferrés e Piscitelli (2015) está relacionada com a capacidade de análise e expressão frente a contextos, mensagens e ferramentas comunicacionais diversas. Nesse sentido, a partir da utilização desses recursos, que demonstra certo conhecimento de Yumesangai também sobre a língua e cultura japonesas, pode-se perceber que a autora possui consideráveis habilidades referentes a tal dimensão. Nesse contexto, é válido pontuar, ainda, como Yumesangai utilizou a linguagem para suscitar a curiosidade do leitor já na descrição da história. Na sinopse, a autora apresenta quatro “situações constrangedoras” numeradas, na perspectiva de Makino: 

“Situação constrangedora número 1: Hanazawa Rui vindo sozinho para a minha casa

Situação constrangedora número 2: Rui e eu sozinhos no meu apartamento.

Situação constrangedora número 3: Rui sem camisa.

Situação constrangedora número 4: Rui sem camisa em cima de mim que estava com roupas transparentes.”

 A sinopse não fornece mais detalhes, sugerindo, dessa forma, que alguma tensão sexual e romântica ocorreu entre Makino e Rui, que parecem se tornar um casal, o que aguça a curiosidade do leitor. No entanto, no desenrolar da fanfic, as situações constrangedoras são colocadas em contexto e, ao fazer isso, a autora revela que as interpretações sugeridas pela sinopse podem não ser tão precisas. Rui, por exemplo, tirou a camisa para colocar sobre os ombros durante o corte de cabelo e, brincando com Makino com um spray de água – o que justifica as roupas da garota estarem transparentes – acaba caindo sobre a amiga. A tensão romântica é apresentada mais por pensamentos de Makino – como “ele perguntou com sua voz calma que fazia meu coração bater duas vezes mais rápido” – do que pelas situações descritas na sinopse em si.

Na dimensão da ideologia e valores, por sua vez, é válido considerar as marcas da cultura japonesa que a fanfic carrega, como as características de linguagem pontuadas anteriormente. O intercâmbio cultural pode ser relevante à medida que apresenta diferentes contextos e estimula a diversidade, inclusive de representação. Além disso, a identificação emocional com os personagens e as situações narradas podem servir, como pontuam Ferrés e Piscitelli (2015, p.13), “como oportunidade para conhecer a nós mesmos e para nos abrir a outras experiências”. Ainda nessa dimensão, é possível reconhecer o compromisso ético de Yumesangai com os autores das obras-fonte, uma vez que enfatiza, nas notas do autor, que os personagens de Hana Yori Dango não a pertencem.

Por fim, em relação à dimensão estética, pode-se identificar a influência de diferentes produções na fanfic, já que a história não se baseia em apenas uma versão de Hana Yori Dango. Em um dos comentários, por exemplo, Yumesangai afirma que a ideia do cabelo grande de Rui foi retirada do mangá, cuja narrativa parece ter sido a inspiração principal da fic. A imagem de capa também é proveniente da série de mangás, apresentando Rui e Makino. No entanto, os comentários dos fãs sugerem que grande parte daqueles que leram a história tem como principal repertório os dramas de TV, o que não impediu, contudo, que os leitores aproveitassem a fanfic. Yumesangai e os fãs se comunicam pelos comentários, trocando ideias e interpretações sobre as diversas versões de Hana Yori Dango, incluindo o animê, dorama e k-drama. Dessa forma, a autora apresentou a “capacidade de se apropriar e de transformar produções artísticas, potencializando a criatividade, a inovação, a experimentação e a sensibilidade estética” (FERRÉS E PISCITELLI, 2015, p.15), estimulando, através do contato com os fãs, o consumo de diferentes produtos midiáticos e até a própria criação de conteúdos originais.

Figura 3: Capa da fanfic remete ao mangá Hana Yori Dango

Referências

FERRÉS, J.; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões

e indicadores. In Lumina, Juiz de Fora, v. 9, n. 1, 2015, p.1-16. Disponível em:

https://lumina.ufjf.emnuvens.com.br/lumina/article/view/436. Acesso em: 15 jun. 2020.

FUKUNAGA, N. “Those Anime Students”: Foreign Language Literacy Development through Japanese Popular Culture. In Journal of Adolescent & Adult Literacy, v. 50, n. 3, 2006, p. 206-222. 

JENKINS, H. Lendo criticamente e lendo criativamente. In Matrizes, v.9, n.1, p. 11-24,

2012. Disponível em: https://bit.ly/2I9TWnn. Acesso em: 15 jun. 2020.

LOPES, M. I. V. et al. A autoconstrução do fã: performances e estratégias de fãs de telenovela na internet. In: LOPES, M. I. V (org.). Por uma teoria de fãs da ficção televisiva brasileira. Porto Alegre: Sulina, 2015,  p. 17-64.

Observatório da Qualidade no Audiovisual

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