Por Gustavo Furtuoso
Eu, a Vó e a Boi é uma série de comédia produzida pelos Estúdios Globo e lançada no serviço de streaming Globoplay em novembro de 2019. A trama foi inspirada numa thread do Twitter feita pelo influenciador Eduardo Hanzo, que assina o roteiro juntamente a Miguel Falabella. Na rede social, Hanzo contava a história de sua avó que morou a vida toda em frente a uma vizinha que detestava e a quem deu o apelido de Boi, por achar machista o termo vaca (Gshow, 2019). As thread trazia algumas das provocações que uma fazia com a outra, como pagar crianças para tocar a campainha e sair correndo ou desligar o disjuntor da casa quando a vizinha usava seu inalador. Para a série, alguns fatos foram adaptados, como transformar essa vizinha também em avó do protagonista.
A direção foi feita por Mariana Richard e a direção geral e artística por Paulo Silvestrini. Para os papéis principais, foram escaladas as atrizes Arlete Salles (Turandot, a Vó) e Vera Holtz (Yolanda, a Boi), além de Daniel Rangel no papel de Roblou, personagem que funciona como narrador da história. Como narrado pelo jovem na cena de introdução do piloto, essa é uma história sobre ódio. Sobre a desavença entre duas senhoras que se odeiam e têm muito tempo livre.
A partir da situação com ares cômicos, Falabella conta que foram sendo tecidas relações entre o microcosmo fictício da rua Tudor Afogado e o momento político vivido pelo país à época, imerso em polarização e animosidades. “Liguei as duas coisas e fiz uma série que tem muito ódio e rancor. Para essa narrativa, parti de uma notícia que li na época de que 75% dos jovens não têm qualquer esperança no país” (Bittencourt, 2021, On-line). A fala do autor sintetiza dois importantes aspectos de Eu, a Vó e a Boi que serão analisados a seguir. O primeiro é a representação alegórica de um país dividido, que trouxe uma atmosfera intensa e pesada à série, algo não habitual para produções de comédia. E o segundo é a perspectiva do jovem brasileiro, configurada no roteiro a partir da escolha de Roblou como protagonista e narrador que quebra a quarta parede, nos introduzindo àquele universo a partir dos relatos de um adolescente criado ali.
Uma comédia em tons de cinza
Localizada numa rua inspirada no subúrbio do Rio de Janeiro, a ambientação traz um choque inicial. Há imediatamente uma quebra de expectativa com relação ao visual da série, pois ao invés das cores saturadas e vivas recorrentes em produções de comédia, somos apresentados a uma vizinhança cinza, sem cores e iluminada por uma luz branca fria, que não traz calor e quase fere os olhos. Já os ambientes internos do bairro são frequentemente escuros e com muitas sombras. Além de tudo isso, no meio da rua, bem em frente às casas de Yolanda e Turandot, há uma enorme vala que nunca é fechada apesar das constantes reclamações [Figura 1].
O diretor artístico Paulo Silvestrini relata que a intenção da ambientação era criar uma sensação de palco, para que os personagens e suas ações pudessem ter destaque. “A série tem um universo não-realista, com relações extremadas entre os personagens e, por isso, eu queria que tivesse algo de teatral no tom” (GShow, 2021, On-line). A escolha da cenografia e os tons de cinza ajudam a distanciar os acontecimentos da realidade, com os exageros das ações tendo harmonia com um aspecto teatral de atuações mais gesticuladas e intensificadas. Além disso, a ideia de palco remete à cenografia de outras produções de Falabella, como Toma Lá Dá Cá e Sai de Baixo, sitcoms com presença de plateia durante as gravações.
Em contraponto ao universo monocromático, os personagens ganham cores vivas em seus figurinos [Figura 2]. O figurinista Cao Albuquerque conta que a ideia era que cada personagem tivesse uma cor associada e que se destacasse no fundo acinzentado. Para as rivais Turandot e Yolanda, por exemplo, as referências foram as grandes rivais do cinema Bette Davis e Joan Crawford e o uso das cores vinho e azul marinho. (GShow, 2021). Já a personagem Norma (Danielle Winits) é exceção e traz uma variedade de cores, com muitas variações de roupas, texturas, maquiagem e perucas [Figura 2]. Isso porque trabalha em uma casa de shows LGBTQIA+ e incorpora alguns aspectos da comunidade em sua identidade e vocabulário, como a expressão viado, que se tornou um bordão para ela na série.
O ódio entre Yolanda e Turandot, força motriz de toda a série, é materializado no cenário a partir de uma vala aberta na rua em frente às casas de ambas [Figura 3]. O buraco, que causa transtornos a toda a vizinhança e que já poderia estar fechado há anos, simboliza a inimizade entre as duas personagens de maneira bastante direta, ao passo que a inimizade entre as duas simboliza a polarização política vivida pela sociedade brasileira a partir da segunda metade da década de 2010. O fim da série, inclusive, se dá com a vala se transformando numa grande cratera com o formato do Brasil, numa alegoria visual que traz um fim simbólico à trama.
Como resultado da incorporação de tais temas, e a partir da escolha do ódio como motivo central da série, Eu, a Vó e a Boi tem uma atmosfera pesada, com forte carga dramática. Isso, ao mesmo tempo que pode ser visto como aspecto de originalidade, também entra em conflito com o teor cômico da série, que tem episódios sendo encerrados em cenas de acidentes ou violência e fugindo à convenção do gênero da comédia de retornar o universo a um equilíbrio com leveza e bom humor.
Temas como corrupção, intolerância e mesmo assassinato, porém, são trazidos pela trama como resultado da intensificação do rancor entre Yolanda e Turandot. As duas personagens se odeiam da primeira à última cena da série mas, de certa forma, reconhecem a dependência que têm uma com a outra, pois como o próprio texto da série discute, o contrário do amor não é o ódio, mas sim a indiferença. Assim, as tramas paralelas dos demais personagens estão sempre, em alguma medida, relacionadas aos segredos e desavenças entre as duas. Porém, diferentemente das matriarcas, esses demais personagens lidam para resolver seus conflitos internos e terminam a série transformados de alguma maneira.
Perspectiva jovem no universo de Miguel Falabella
O segundo aspecto que articula os recursos audiovisuais da trama é a aproximação do universo construído com o público mais jovem. Logo de início, muitas semelhanças entre a produção e outros títulos de Miguel Falabella podem ser notadas, desde a ideia do palco até a escolha do elenco, com nomes como Arlete Salles, Alessandra Maestrini e Stella Miranda que já são associados à proposta de comédia do autor. Porém, em Eu, a Vó e a Boi há uma mudança significativa no forma como temos acesso a história, pois o protagonismo foi dado à Roblou, jovem neto das duas vizinhas inimigas e que traz não só uma perspectiva diferente, mas também outros traços que ajudam a aproximar a série das gerações mais novas.
A própria ideia que gerou a série veio de uma thread feita por um influenciador no Twitter. Este fato foi incorporado à trama, que além de trazer elementos da história da avó de Eduardo Hanzo, agregou também a linguagem e dinâmica das redes sociais em grafismos utilizados na apresentação dos personagens. A sequência de abertura do primeiro episódio traz a narração de Roblou acompanhada de imagens que ilustram o que o garoto conta. Quando um novo personagem é introduzido, há o congelamento da imagem e a inserção de um fundo colorido [Figura 4]. O nome do personagem é dado através de seu username nas redes sociais, com o sinal de arroba, e uma breve descrição é feita por meio de uma hashtag, inserindo no storytelling da série elementos característicos do microblogging no qual foi baseada a história.
A narração em primeira pessoa com a quebra da quarta parede também colabora para trazer uma repaginada ao universo característico de Falabella. A série faz uso de um estilo de comédia que ganhou destaque a partir de Fleabag (BBC/Prime Video), o que permite um maior vínculo do telespectador com o personagem de Roblou e, consequentemente, com o ponto de vista de um jovem suburbano de uma grande cidade brasileira. O conceito de alinhamento (Mittell, 2015) diz respeito à maneira como acessamos o universo ficcional a partir dos diferentes personagens da trama. Ele se dá a partir do vínculo, que significa seguir a perspectiva de um ou alguns personagens, e do acesso, ou seja, da possibilidade de adentrar a interioridade desses personagens, suas emoções, moral e maneira de ver o mundo. Ao quebrar a quarta parede com Roblou, ganhamos acesso privilegiado a seu personagem, o que garante que o público irá se aproximar primeiramente de seu ponto de vista, antes de qualquer outro. Com isso, um universo cujas características parte do público já conhece a partir de seu repertório com experiências anteriores do autor, é renovado e se amplia para poder gerar identificação também com novos públicos.
Logo no primeiro episódio, por exemplo, há o desenvolvimento do romance entre o protagonista e Demimur. Os dois jovens se reencontram após certo tempo e relembram que tinham uma queda um pelo outro. Isso acontece justamente no aniversário de Roblou, quando o personagem ganha um perfume de sua mãe que supostamente o torna irresistível para as garotas. De fato, seja pelo perfume ou não, os dois acabam confessando a atração que sentem pelo outro e ficam juntos, com uma cena de sexo e nudez parcial dos atores. O conteúdo da cena e a maneira como foi filmada escapam um pouco do padrão de sitcom usado nas comédias de Falabella, aproximando-se da estética de produções como Euphoria (HBO). Ao tratar da descoberta da sexualidade e usar estilizações visuais, como movimentos de câmera e fusões de imagens, a série flerta com a estética de produções adolescentes de grande sucesso na atualidade, apelando para gerações mais novas que já estão mais inseridas na dinâmica de consumo via streaming. Uma vez que a série surgiu de uma thread do Twitter e foi disponibilizada diretamente na internet, foi uma ação estratégica adaptar a proposta para esse perfil de público.
Além de Roblou, Matdilou, primo do protagonista e também neto de Yolanda, tem um canal no Youtube em que posta diversos vídeos com participação dos moradores do bairro. As cenas que trazem os vídeos possuem formato widescreen anamórfico, com um tamanho reduzido em tela, gerando uma espécie de moldura para a imagem e sinalizando ao telespectador tratar-se de uma gravação feita pelo personagem, e não a narração desempenhada pelas câmeras [Figura 5].
Sintetizando essa característica mais jovial da série, a abertura traz uma trilha sonora de rock da banda The Kinks e uma animação gráfica que introduz o telespectador ao universo cinzento e cheio de rancor da série (OQA, 2022). A câmera, flutuante, adentra a vala aberta na rua e temos uma visão do buraco situado sobre a casa de Yolanda e Turandot, que se assemelha a uma grande caverna e onde voam diversos objetos representativos dos diversos personagens [Figura 6]. Numa estratégia semelhante à que foi usada por David Lynch na abertura de Blue Velvet (1986), somos alertados da podridão e da maldade que podem se esconder por detrás das fachadas do subúrbio. O estilo de animação, o movimento fluido com diversos elementos coloridos e a trilha sonora ajudam a criar uma imagem mais jovem e despojada da série.
Parâmetros da qualidade na criação audiovisual
Esta análise usa como aporte teórico-metodológico a proposta de Borges e Sigiliano (2021), a partir da qual, seguida da análise sobre a forma e conteúdo, é identificado em que medida alguns parâmetros de qualidade estão presentes ou ausentes na série em questão. Além disso, também são verificados aspectos relacionados à competência midiática que auxiliam no entendimento sobre a maneira como determinadas lacunas deixadas pelos criadores no corpo do texto podem estimular ou colaborar no desenvolvimento de habilidades interpretativas e críticas no público (Borges et al, 2022).
Logo de início, foi constatada a presença de uma experimentação na linguagem audiovisual, com ângulos e posicionamentos de câmera inusitados, como os utilizados na sequência que abre a série. Apenas durante a narração de abertura, em menos de cinco minutos de episódios, além das imagens objetivas dos personagens em ação, foram utilizados flashbacks, inserções gráficas e posicionamentos de câmera como os seguintes: (1) balançando no céu como uma pipa, que percebemos ser controlada por Robleu na cena que se segue, (2) sob o ombro de Matdilou, capturando a imagem da tela de seu celular, (3) dentro do cano da arma com a qual Turandot pretende atirar em Boi e (4) na perspectiva da câmera de vigilância do bairro [Figura 7]. Essa abertura já sinaliza aos telespectadores que a série irá articular perspectivas e pontos de vista de maneira criativa, além de intercalar o uso de diversas telas para compor sua narrativa.
Além da cena inicial, que se inicia no céu e faz um movimento rápido de queda em direção à rua Tudor Afogado, diversas cenas são introduzidas com a câmera em plongée, tomando a ação num ângulo perpendicular de cima para baixo [Figura 8]. Esse posicionamento gera efeitos de sentido, sendo os mais comuns a sensação de que os personagens estão pequenos e vulneráveis (Sijll, 2005). No caso de Eu, a Vó e a Boi, o efeito criado é o de estarmos bisbilhotando a vida daquelas pessoas. Em meio a uma cidade vasta, aquela é uma rua como tantas outras e, de repente, temos acesso privilegiado a ela e à intimidade de seus moradores.
A série aproveita alguns temas e personagens para uma ampliação do horizonte do público. O personagem Seu Rocha (Alessandra Maestrini) é cantor lírico e, em diversos episódios, temos apresentações de ópera, o que traz ao público geral uma forma de arte tida como erudita e elitista. Também há as personagens de Mary Tyler e Belize, mulheres da terceira idade mas que possuem personalidades e comportamentos mais joviais, que trazem uma nova perspectiva sobre a velhice, quebrando o estereótipo do idoso como alguém dependente ou inválido. Além desses exemplos, há a doação do leite materno de Demimur para um banco de leite, que chama atenção do público para a importância da iniciativa.
Tratando do parâmetro dos estereótipos, para além do exemplo de Mary Tyler e Belize, há também a questão de Demimur. Depois de descobrir sua gravidez, a personagem tem uma mudança um pouco abrupta e decide que dará o filho para adoção pois quer seguir sua carreira de bailarina. Embora seja uma opção válida diante da situação em que se encontra, sua decisão acaba por reforçar o estereótipo da new woman, derivado das séries estadunidenses da década de 1970, em que uma mulher branca, heterossexual e sexualmente ativa precisa renunciar a seu lado maternal para alcançar seu sucesso profissional (Lotz, 2006)
Além de terem comportamento e estilo de mulheres jovens, Mary Tyler e Belize são senhoras que namoram o filho e o neto de Yolanda, Marlon e Matdilou, um relacionamento que possui finalidades cômicas mas que também traz momentos que buscam questionar os tabus e preconceitos em relações com diferença de idade entre os parceiros [Figura 9]. Este é um ponto que diz respeito ao tratamento que a série faz da diversidade, que também está presente, por exemplo, no personagem de Seu Rocha. Não é especificada a identidade de gênero do personagem, que é interpretado por uma atriz e utiliza pronomes e figurinos masculinos na trama mas, para sua apresentação de ópera, se veste com um vestido – o que relata ser desconfortável durante a cena. Além disso, seu arco se encontra com o de Celeste ao final da temporada, com quem se casa.
Por fim, observamos o parâmetro da originalidade, que a este ponto, já foi tópico comentado em algumas outras seções do texto. Em síntese, a própria proposta, adaptada a partir de uma thread do Twitter e vendida como tal, trouxe novos elementos ao universo criativo característico de Miguel Falabella, trazendo uma roupagem nova para o gênero de sitcom que o autor estabeleceu nas últimas décadas. As características teatrais do palco e da plateia encontram a montagem ágil e a experimentação inspirada pelas redes sociais e pelo olhar jovem dado à narrativa, resultando numa obra dinâmica e híbrida, nas linguagens e nos gêneros.
Qualidade audiovisual e competência midiática
Em relação às lacunas deixadas pelos criadores da série, podemos destacar uma composição imagética que privilegia o uso do eixo Z, que cria a sensação de profundidade de campo na tela bidimensional. A posição das casas de Yolanda e Turandot, uma de frente a outra, cria diferentes camadas entre ambos os espaços com a rua ao centro, que são explorados pelas câmeras a partir de perspectivas [Figura 10]. Isso reforça visualmente o confronto entre ambas, que estão sempre testemunhando, mesmo que sem querer, a vida da vizinha.
Também é recorrente o uso de planos em que há alguém testemunhando um acontecimento, com a silhueta do observador desfocada em primeiro plano. Isso nos dá a sensação que somos testemunhas e estamos, de certa forma, presentes na ação. O diretor artístico Paulo Silvestrini conta que a série buscou flertar com o universo gamer, inserindo o telespectador como um avatar, um personagem observador dos acontecimentos. “Eu comecei a enxergar o público como uma figura participante e invisível do nosso universo. É como se eu desse um joystick e ele criasse um avatar invisível dele para acompanhar a história” (Bittencourt, 2021, On-line).
A variação de foco das lentes durante as cenas também foi usada como ferramenta narrativa para guiar o olhar da audiência pelos pontos importantes de cada cena. Esse recurso configura uma seta chamativa, ou seja, um direcionamento narrativo colocado pela série para ajudar o público no entendimento da trama, podendo ser visual, sonoro ou verbal (Johnson, 2012). Em Eu, a Vó e a Boi, há um uso excessivo desse tipo de direcionamento do olhar, por vezes mesmo em cenas que não seriam necessárias, pois não havia diferentes ações para disputar a atenção do telespectador. Esse tipo de condução forçada da atenção da audiência é bastante comum na televisão, sobretudo em telenovelas, e parece ter sido estendida à série, mesmo esta sendo desenvolvida para lançamento na plataforma de streaming.
Na cena do primeiro episódio em que Yolanda vai até a casa de Orlando (Otávio Augusto) e conversam em segredo sobre ele ser o real pai de Montgomery (Marco Luque), temos a vista de um ponto de vista mais distante, no fundo, como se alguém os observasse. Quando Yolanda suspeita de algo por ter ouvido um barulho, o foco da câmera está nela, apesar de o ponto de vista ser do local para onde ela olha [Figura 11]. Além de direcionar o olhar para o ponto que ela estava olhando, a série já nos sinaliza que de fato havia alguém ali – que descobrimos episódios depois ser Turandot. Essa construção, de nos indicar a presença de alguém, também favorece a relação de pista-recompensa, em que sutilmente recebemos uma informação privilegiada que nos permite criar uma expectativa que logo será confirmada, criando a sensação de que estamos juntando as peças e antecipando os acontecimentos da história.
Os recursos de storytelling já foram mencionados ao longo da análise, mas consistem principalmente na narração em primeira pessoa com quebra da quarta parede por parte de Roblou, os flashbacks que contextualizam fatos passados e a câmera de Matdilou com seus vídeos para o Youtube. Já quanto a efeitos especiais narrativos, não houve constatação de nenhuma construção narrativa que demandasse, a partir de um acontecimento ou informação novas, toda uma reconfiguração do entendimento do público sobre algum arco narrativo.
A última categoria é a presença de intertextualidade no texto, e aqui foram identificadas diversas referências. Desde os nomes da maioria dos personagens, que criam uma versão abrasileirada de nomes de estrelas internacionais (Rob Lowe, Demi Moore, Matt Dillon, etc), até referências diretas nos diálogos, como Black Mirror (Netflix) e American Horror Story (Fox), com a qual o protagonista compara a dinâmica de suas avós a uma Brazilian Horror Story. Também há uma composição que faz referência a uma passagens bíblicas, na cena em que Celeste corta os cabelos de Cabelo, num paralelo com a história de Sansão e Dalila.
Outras formas de intertextualidade se dão de maneira a articular o estilo de cenas inteiras para outros gêneros e formatos audiovisuais, como (1) a novela mexicana, (2) o western e (3) filmes noir ou investigativos [Figura 12]. No primeiro caso, fez-se o uso de câmera lenta para intensificar a dramatização da cena de violência, ao passo que a música mexicana da cena de dança Demimur era continuada para a cena da luta, unindo as duas coreografias Na cena que parodia o gênero western, Yolanda e Turandot se enfrentam com mangueiras como se fossem pistoleiras de faroeste, fazendo uso inclusive do plano americano, enquadramento consolidado por filmes do tipo. Já a cena com inspiração noir, traz um interrogatório policial, com iluminação forte de cima para baixo, no rosto dos personagens, que dão depoimentos à polícia. O contraste entre a luz e a escuridão, assim como a dinâmica entre os personagens, remete a filmes policiais ou de detetive.
A fins de conclusão, Eu, a Vó e a Boi é uma série que combina diferentes estilos e linguagens para criar uma comédia dramática que, ao propor uma alegoria para o contexto político do país, abre mão de uma comédia mais escancarada, como é comum aos trabalhos similares feitos por Miguel Falabella, para trazer muitas analogias sem garantir o devido aprofundamento de alguns personagens para que tais história tivessem o impacto pretendido. Os conflitos e arcos de alguns deles pendem mais ao drama em si, que a própria comédia, resultado do ódio irradiado por Yolanda e Turandot e evidência narrativa de como a desavença entre ambas contamina todos a seu redor. Há inúmeras referências que os telespectadores podem ter prazer em identificar a partir de seus repertórios, apesar de que a série, em sua narração com a câmera, é bastante didática e guia o olhar de maneira quase excessiva, como é mais habitual em telenovelas. Com tudo isso, a própria criação da série representa uma aposta experimental da Globoplay de, ao investir num enredo inspirado em algo trivial como uma thread do Twitter, tentar abranger o público e os assuntos que estão na internet com uma forma de fazer comédia já reconhecida e consolidada pela televisão.
Referências
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BITTENCOURT, Carla. Série criada a partir do Twitter, Eu, a Vó e a Boi estreia na Globo. Metrópolis, 2021. Disponível em: <https://www.metropoles.com/colunas/o-melhor-da-tv/serie-criada-a-partir-do-twitter-eu-a-vo-e-a-boi-estreia-na-globo>. Acesso em: 08 jan. 2024.
GSHOW. Eduardo Hanzo criou a thread que inspirou ‘Eu, a Vó e a Boi’. 2019. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/8121365/programa/>. Acesso em: 08 jan. 2024.
GSHOW. ‘Eu, a Vó e a Boi‘: 10 curiosidades sobre a série que estreia na TV Globo. 2021. Disponível em: <https://gshow.globo.com/tudo-mais/pop/noticia/eu-a-vo-e-a-boi.html>. Acesso em: 08 jan. 2024.
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OBSERVATÓRIO DA QUALIDADE NO AUDIOVISUAL (OQA). Eu, a vó e a boi. 2022. Disponível em: <https://observatoriodoaudiovisual.com.br/blog/eu-a-vo-e-a-boi-3/>. Acesso em: 08 jan. 2024.
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