Observatório da Qualidade no Audiovisual

My purple universe: as fanfics dos Bangtan Boys

Por Hsu Ya Ya

Bangtan Boys, conhecido como BTS, é um grupo de pop sul-coreano formado por sete integrantes: RM (Kim Nam Joon), Jin (Kim Seok Jin), Suga (Min Yoo Gi), J-Hope (Jung Ho Seok), Jimin (Park Ji Min), V (Kim Tae Hyung) e Jungkook (Jeon Jung Kook), que teve sua estreia mundial em 13 de junho de 2013 com o single “No More Dream”.

O fandom do boygroup sul-coreano é conhecido como “army”, sigla para Adorable Representative M.C of Youth (Adorável Representante M.C da Juventude). O nome também faz alusão a palavra “army” (exército), uma forma de representar os fãs como uma espécie de exército que protege os integrantes, os Bulleproof Boys Scouts (Meninos à Prova de Balas).

Apesar da multiplicidade da prática dos fãs do BTS, o foco nesta análise se dá pela produção de fanfics em que os integrantes são inseridos na narrativa como protagonistas ou coprotagonistas. As narrativas ficcionais escritas pelas duas entrevistadas são desenvolvidas boa parte pelo gênero AU, ou seja, personagens do cânone dentro de um universo alternativo, que se categoriza no subgênero RPF – Real Person Fiction.

Para a análise das dimensões da competência midiática, propostas por Ferrés e Piscitelli (2015), foram aplicados questionários on-line com questões discursivas pré-determinadas e direcionadas aos fãs que produzem fanfics sobre BTS. O questionário era composto por nove questões, sendo seis perguntas gerais sobre as fanfics como, por exemplo, o primeiro contato, o processo criativo, os processos e habilidades desenvolvidas a partir da criação das histórias ficcionais. Além disso, foram elaboradas três questões específicas que abordam de forma mais detalhada alguns elementos existentes das dimensões linguagem, ideologia e valores e estética, como o desenvolvimento na trama sobre as culturais distintas, neste caso específico, a cultura asiática no contexto brasileiro; os elementos intertextuais e as questões LGBTQI+, shipp e o empoderamento feminino. Posteriormente, as respostas foram sistematizadas a partir do software de análise qualitativa de dados Atlas.it.

No software codificamos os trechos das entrevistas em que as dimensões de estavam em operação. Ou seja, foram criados três códigos no software, são eles: Dimensão Linguagem (DL), Dimensão Ideologia e Valores (DIV) e Dimensão Estética (DE). Também configuramos o código Informação Geral (ID), para reunirmos informações tais como nome, e-mail, perfil em redes sociais e plataformas digitais dos fãs. Num segundo momento, após o agrupamento dos conteúdos a partir dos códigos DL, DIV, DE E ID criamos uma rede semântica para cada dimensão.

Imagem 1: Rede Semântica gerada a partir do código Informação Geral (ID)

As entrevistadas Paola Figueiredo e a Karol Montblanc, se conheceram através de um projeto na plataforma Spirit Fanfiction. Atualmente Karol possui 49 histórias publicadas no Spirit Fanfiction e 25 no Wattpad. As tramas,  fanfics oneshot e algumas longfics,  abrangem diversos temas como fics BTS, Naruto, manwhas (histórias em quadrinhos da Coreia do Sul) e entre outros. Já a Paola escreve fanfics, em sua maioria oneshot, com foco no BTS e também protagonizadas por outros grupos do mesmo gênero musical do pop sul coreano como Red Velvet, Twice, Exo, Miss A, Loona, SNSD (Girls Generation), além de poesias e histórias originais. 

Para além das produções em comum, como histórias sobre o boygroup sul-coreano BTS, as autoras se conheceram através do STproject. O projeto tem como objetivo promover fanfics na categoria do Bangtan Boys (BTS) e explorar o gênero hentai através de uma temática selecionada para a temporada. Paola era uma das administradoras do projeto quando a Karol participou como escritora, durante a quarta temporada com a temática “Romance de Época X Era Wings”. Com o constante contato entre elas e posteriormente a saída de ambas do projeto, a aproximação resultou na parceria da fanfic Make Me Bark (em hiato).

Apesar de todas as dimensões propostas por Ferrés e Piscitelli (2015, p. 8-14) estarem em operação tanto na compreensão crítica quanto na produção criativa das fãs, iremos focar em três dimensões. São elas: Linguagem (DL), Ideologia e Valores (DIV) e Estética (DE).

A dimensão Linguagem refere-se à capacidade de compreender a forma como as mensagens são construídas em diferentes mídias; estabelecer relações entre textos, códigos e mídias e se expressar por meio de diferentes sistemas de representação e estilos em função da situação comunicativa, do conteúdo transmitido e do interlocutor (FERRÉS; PISCITELLI, 2015).

Imagem 2: Rede Semântica gerada a partir do código Dimensão Linguagem (DL)

As autoras comentam que a compreensão da linguagem ultrapassa os limites da produção de fanfics, está ligado também a forma como um leitor se sente em relação a obra e como se expressada através dos comentários. Este diálogo mútuo instiga as autoras a aprimorarem a escrita. Conforme pontuada por Paola, “[…] a habilidade de compreensão textual e leitura crítica é a primeira que posso citar. Quem nunca leu uma fanfic incrível e deu tudo de si para desenvolver um comentário que demonstrasse todo esse amor que sentiu ou então desvendou o mistério da história antes de todo mundo e criou uma teoria coesa bem descrita para provar seus argumentos que atire a primeira pedra!”. O anseio e a compreensão da fã também está associado ao entendimento como leitor, o que já se conecta ao âmbito da expressão, como forma de utilizar diferentes sistemas para o processo comunicativo. Todo este percurso criativo se desdobra em novos modos de aprendizagem e colaboração. Segundo Karol, “uma das primeiras coisas que consigo pensar é a curiosidade, não ficar apenas presa em uma única ideia, sobre qualquer assunto em geral. Eu aprendi a querer conhecer todas as versões de um fato. Aprimorei muito minha escrita, desde o início até o momento. Também aprendi a buscar conhecimento sobre assuntos que não fazem parte do meu nicho. E algo ainda mais importante é que eu aprendi que fanfics geram conexões naturalmente, mas também pode acontecer de ir além e encontrar amigos, uma família que compreende e ama algo em comum. Uma união sem preço.”

A dimensão Ideologia e valores relaciona-se com a capacidade de entender como as representações midiáticas estruturam nossa percepção da realidade; avaliar a fiabilidade das fontes de informação; habilidade de buscar, organizar, contrastar, priorizar e sintetizar informações de distintos sistemas e contextos (FERRÉS;PISCITELLI, 2015). Além da capacidade de usar as ferramentas comunicativas para elaborar, transmitir e questionar valores ou estereótipos presentes nas produções midiáticas, contribuindo para a melhoria do ambiente social e cultural, atuando de forma comprometida (FERRÉS;PISCITELLI, 2015).

Imagem 3: Rede Semântica gerada a partir do código Dimensão Ideologia e Valores (DIV)

Uma das perguntas para as fãs estava relacionada diretamente a forma como elas trabalhavam as questões culturais asiáticas dentro das fanfics. De acordo com Karol, para escrever as fanfics é preciso aprender a ser criativo e criar caminhos diferentes para chegar ao leitor. “As possibilidades para trabalhar com essas culturas tão distintas são variadas. Não se apegar a uma só em específico, mas criar um equilíbrio para que haja fácil compreensão, é o que torna a construção desse caminho mágico”, explica.  Paola complementa que “[no] mundo das fanfics, todo o comportamento dos personagens é uma mescla dos dois países. Culturalmente falando, não é apenas o idioma e a forma de se expressar que é diferente entre um e outro, então a personalidade dos personagens é moldada para o público alvo sobre a nossa realidade aqui e o que se admira lá”. Desta forma, podemos observar a forma como as autoras vêem a importância de trabalhar as duas culturas tão distintas, não enaltecendo um e apagando o outro, mas trabalhando de forma conjunta para que haja uma melhor compreensão e conhecimento dos leitores.

Além disso, ao serem questionadas sobre o modo como os valores e os estereótipos são explorados em suas produções Karol ressalta a importância de abordar a temática do machismo e outros assuntos importantes como o feminismo. E também destaca questões sobre a mulher na sociedade, muitas vezes abordada dentro da fanfic quando a personagem é mal vista por não estar de acordo com as ideias da sociedade patriarcal e a forma como a escritora se posiciona diante daqueles acontecimentos. 

Paola explica que, apesar de ser um assunto necessário, nunca foi intencional tratar diretamente sobre as questões de empoderamento feminino. Segundo a fã “[…] a intenção era retratá-lo (o empoderamento) como algo natural. Toda mulher merece ser admirada assim, do jeito único e diferente que é, principalmente quando a força interior que todas carregamos se aflora. Gostaria de trazer os holofotes para a independência que merecemos ter”. Dessa forma, as narrativas criadas pelas autoras são protagonizadas por minorias e pautadas pela diversidade. São desdobramentos que, de certa forma, ainda são inviáveis no mercado comercial, estimulando não só a reflexão das fãs sobre os padrões reproduzidos no mainstream, mas também, proporcionando aos leitores o acesso a conteúdos que se distanciam dos “padrões normativos”. 

A dimensão estética se refere à capacidade de relacionar e identificar referências intertextuais, explorando novas camadas interpretativas, e também de produzir conteúdos pautados na criatividade e na originalidade (FERRÉS; PISCITELLI, 2015). 

Imagem 4: Rede Semântica gerada a partir do código Dimensão Estética (DE)

Neste contexto, Paola comenta que utiliza bastante elementos intertextuais em suas histórias. Como, por exemplo, citações de obras canônicas, a letra de alguma música como inspiração para o desenvolvimento de uma songfic, como a música Who e a fanfic homônimo, do Lauv em parceria do BTS: “onde “filtrei” a ideia principal da melodia para transformar em uma trama com 18 mil palavras. A ideia da música é questionar sobre o “verdadeiro eu” da pessoa por quem se apaixona e este foi o conflito do protagonista Park Jimin na trama”.

Para Karol as referências intertextuais também podem surgir de forma espontânea. Porém, algumas partem de produções canônicas como, por exemplo, na fanfic Mr. Intense, que apresenta os principais elementos da narrativa, como a máscara e as transmissões de live, baseado no manhwa BL BJ Alex. Outro ponto é a protagonista, que parte de alguns elementos de outro manhwa chamado A Pervert Daily Life com uma personalidade insaciável, mesclando assim uma trama que mistura mistério e relações sexuais. Outra fanfic da autora intitulada “Sr. Kim”, aborda “a temática sobre aulas de sexologia, me levou a querer transmitir muito mais conhecimento ao mesmo tempo que a história desenvolve o prazer. Um dos primeiros elementos detalhados é o livro indiano Kamasutra, as citações são baseadas em posições sexuais que transmite aos parceiros não apenas conhecimento sobre o corpo, mas que haja uma relação de conexão além do prazer, onde ambos possam se preocupar um com o outro, ainda que sejam desconhecidos.” explica Karol. Segundo a fã há um envolvimento muito maior por trás do desenvolvimento do plot, visto que a mesma procura trazer o assunto de forma resumida e de fácil entendimento para o leitor, além de unir conhecimentos de outras áreas como teoria da sexologia (Freud) e teoria sobre o amor e a relação interpessoal construída a partir de três componentes: intimidade, paixão e compromisso.

Dessa forma, podemos observar que as fãs colocam em prática as dimensões da competência midiática, mesmo que de forma indireta e procuram melhorar as suas histórias através de pesquisas sobre os assuntos abordados e também, o vínculo de parceria e amizade que extrapolaram o universo ficcional e o prazer comum para o cotidiano delas.

Nota: As entrevistas foram realizadas no mês de maio de 2021. Devido a questões pessoais, a Paola deletou as fanfics publicadas nas plataformas e segue sem previsão de retorno para a criação de histórias. Já a Karol, infelizmente teve a sua conta na plataforma Spirit Fanfics banido por “Violação dos Termos de Uso: Prática de Spam e atividade comercial indevida”, o que traz reflexões sobre até que ponto são as limitações de um autor, ao compartilhar dentro das suas próprias fanfics a conquista de ter publicado o seu primeiro e-book, além da falta de incentivo e crítica por certos leitores ao transformar uma fanfic em uma história original.

Referências 
FERRÉS, J.; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, v. 9, n, 1, p. 1-16, 2015. Disponível em: <https://goo.gl/3EQnc6>. Acesso em: 24 mai. 2021.

FIGUEIREDO, P.; MONTBLANC, K. My purple universe: as fanfics dos Bangtan Boys. Entrevista concedida a Hsu Ya Ya. Observatório da Qualidade no Audiovisual, Juiz de Fora, 2021.

Informamos que a quarta fase deste projeto (CAAE 51662921.4.0000.5147) foi submetida e está de acordo com os princípios éticos norteadores da ética em pesquisa estabelecido na Res. 466/12 CNS e com a Norma Operacional Nº 001/2013 CNS. Data prevista para o término da pesquisa: março de 2022.

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