Observatório da Qualidade no Audiovisual

Rito de Passá

Por Vinícius Guida

Mc  Tha é cantora e compositora, nascida na periferia paulistana, que mescla diversos ritmos entre o funk, a MPB e o pop. Iniciou a carreira  com o single “Olha Quem Chegou” (Independente, 2014), produzido por Jaloo – artista paraense considerado uma revelação no cenário eletrônico. Em 2016, a artista lançou a faixa “Pra Você” (Independente) que apresentava uma repaginação do funk, incluindo sonoridades dos batuques afro-brasileiros, e tendências eletrônicas e brega.

Em 2019, lançou de forma independente o álbum “Rito de Passá”, aclamado pela crítica. Posteriormente, relançando em vinil pelo selo NOIZE Record Club, o disco foi descrito como um “universo dançante que envolve as raízes da música afro-brasileira em timbres sintéticos e transporta o universo sentimental da artista direto para as pistas” (NOIZE, Online).

A crítica especializada ressaltou a fluidez entre diferentes ritmos no disco, pontuando a versatilidade da artista. O Monkeybuzz afirma que “O debut de Mc Tha ostenta a capacidade da cantora de atravessar uma série de gêneros musicais”. No MiojoIndie, o destaque vai para construção de versos sensíveis e para a “formação dos arranjos que vão do funk ao uso de elementos regionais. O Globo aponta as influências de Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia e Clara Nunes como algo que elevou a sonoridade da artista produzindo, segundo o jornal, “um funk menos engessado”.

O videoclipe da faixa-título, “Rito de Passá”, foi lançado quatro meses antes do álbum chegar às plataformas digitais. Goodwin (1992) explica que a produção de um videoclipe está fortemente associada tanto à música que o gera quanto a cultura musical – e os contextos – que o envolvem. Dessa forma, a produção audiovisual serviu como uma prévia da sonoridade adotada pela artista no álbum de estreia, englobando todas as características associadas a este como, por exemplo, a simbologia das religiões de matrizes africanas e dos tambores. A segunda produção audiovisual do álbum, “Coração Vagabundo”, foi lançada um ano após a primeira. [1]

O título, a música, e as imagens do videoclipe invocam rituais da Umbanda. No YouTube o vídeo é descrito da seguinte forma: “Rito de Passá são os Orixás em cada canto da natureza auxiliando com suas vibrações em cada fase. Em cada tempo. É a analogia deles”. A descrição do vídeo conclui afirmando que o “Rito” representa a busca por espaço de sujeitos socialmente marginalizados.

A ambientação do clipe transita entre externas e internas, mas que incorporam muito elementos naturais, especialmente plantas. Nas cenas externas, apresentam-se cenários naturais como um grande gramado rodeado por árvores altas e cachoeiras. Na principal interna do vídeo, a artista se encontra em frente à uma grande janela, que serve como pano de fundo para suas ações e colaboram para compor a ideia de situar o espectador em contato com a natureza, mesmo em uma sala fechada. 

Figura 1: Cena externa e externa de “Rito de Passá”.

“Rito de Passá” apresenta poucos efeitos sonoros para além da própria música. A produção começa com um silêncio, logo quebrado pela inserção de sons de pássaros, com volume baixo, que se estendem até os primeiros momentos musicados. Conforme destaca Holzbach (2016, p. 78), as narrativas do gênero do videoclipe “objetivam menos transmitir uma mensagem linear […] e mais a cooptação dos sentidos a audiência”. Nesse sentido, a ausência de som, com a adição posterior de sons naturais de baixa frequência, colaboram para gerar a percepção de paz transmitida pelo vídeo. De modo geral, o conceito sonoro da produção está em diálogo com os demais elementos, gerando coesão entre entre as diferentes partes que compõe o videoclipe.

A fotografia da produção incorpora, novamente, tons naturais expressos tanto pelos cenários quanto pelos figurinos. Predominam o verde, amarelo e tons terrosos, assim como o bege e branco das roupas da artista e dos demais personagens. Os planos variam entre planos abertos e close que buscam destacar os pontos descritos: elementos naturais e a correlação da artista-personagem com a natureza que a envolve. Os planos recortados, mais próximos, são constantemente trabalhados em slow-motion, permitindo a percepção de mínimos movimentos dos tecidos dos figurinos e dos banhos de erva apresentados.

Figura 2: Closes em slow-motion.

A edição do videoclipe é não-linear e envolve tanto elementos coreografados como cenas documentais. Segundo a descrição da postagem oficial do canal da artista no YouTube, as segundas “foram captadas em Nazaré Paulista – Cantinho dos Orixás, em um dia de ritual externo do terreiro de Umbanda Caboclo das 7 Pedreiras”. Combinando essas duas propostas imagéticas, o clipe apresenta uma recriação dos rituais, focada mais em efeitos sinestésicos do que na composição de uma clara narrativa. Até a metade da produção, somente cenas roteirizadas são intercaladas, entre internas e externas. O momento de transição para a exibição da parte documental através da própria música, após a conclusão do refrão. Além desse recurso do corte acompanhando o compasso da canção, as cenas documentais são destacadas através de um recorte na janela, exibidas em fundo preto, em tamanho menor, centralizadas no quadro.

Figura 3: Cena da parte documental do videoclipe com fundo preto proposital.

O tema da produção audiovisual e da música estão relacionados a rituais de purificação espiritual, através da reconexão com a natureza. Apresentando religiões de matriz africana, o clipe parece buscar ressaltar a relação da fé umbandista com o seu entorno. MC Tha canta “me refiz na lama, vi pedra rolar, dancei com a correnteza, me deixei pro mar” e sua poética é ressaltada de maneira indireta no clipe. As imagens exibidas não são necessariamente dos objetos descritos na canção, mas todas corroboram a sensação temática pretendida. Com efeito, o vídeo realoca alguns dos sensos comuns atribuídos aos ritos afro-brasileiros, construindo uma narrativa positiva que os reafirmam e reivindicam sua legitimidade em um contexto social predominantemente cristão.

Associada desde o começo da carreira a Jaloo, o videoclipe apresenta algumas semelhanças e intertextualidades com produções anteriores do cantor, em especial com o clipe de “Chuva” (2016).  A ambientação e a temática natural são semelhantes e alguns planos se assemelham. 

Figura 4: Cena de “Chuva” (à esquerda) e “Rito de Passá”

No entanto, outras correlações no interior do próprio texto podem ser percebidas, principalmente na inter-relação entre as cenas documentais e roteirizadas. Mc Tha incorpora elementos da tradição umbandista no roteiro e proposta se torna ainda mais nítida comparando as relações entre as duas partes do texto audiovisual. Movimentos fluídos, que fazem referências aos momentos de oração também explicitados no clipe, são reconstruídos pela artista em sua performance. As velas no altar dos Orixás, exibidas na parte documental, marcam presença nos momentos roteirizados do clipe, em especial nas últimas cenas em que a cantora veste uma coroa de velas.

Figura 5: Cenas correlacionadas entre a parte documental e roteirizada.

 “Rito de Passá” se constrói na contramão dos estereótipos relacionados com religiões afro-brasileiras. Segundos dados do Disque 100, 59% das reclamações registradas por discriminação e intolerância religiosa estão relacionados à matrizes africanas. Cruzados a outros números contemporâneos como, por exemplo, o fato de cerca de 75% das vítimas de homicídio registrados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) são pessoas negras, nos apontam para a percepção da composição racista da sociedade brasileira.

Nesse sentido, o clipe busca desmistificar associações pejorativas à Umbanda (estendidas às demais matrizes africanas), compondo o “Rito” de maneira tranquila e fortemente associado à relação ser humano e mundo natural. Destacam-se a forma como esses processos se dão pessoal e coletivamente, distanciando-os dos possíveis efeitos negativos imbricados no senso comum.

O storyline do videoclipe corrobora isso, apresentando a artista em ação com diversas formas ritualísticas de purificação intercaladas. São mostrados banhos com pétalas e ervas, ritos com incensos e sal, assim como as gravações in loco que apresentam a realidade desses processos.

No que se refere a inovação, observa-se uso de elementos estéticos como a fotografia, os cenários e os figurinos, para recompor uma parte da história da negritude brasileira. A temática é explorada de maneira divergente do habitual apresentando pequenos detalhes com efeito sinestésico que transportam o espectador para o clima esperado. Além disso, o recorte que incorpora tanto elementos roteirizados quanto documentais proporciona uma narrativa fluída. À primeira vista, os elementos que sinalizam essa mudança podem passar despercebidos, dando uma sensação primária de todos as componentes fazem parte de um mesmo processo de criação e captação.

A originalidade da produção audiovisual é sensível em diversos pontos, mas pode ser destacada justamente na remixagem das imagens documentais. A colorimetria do vídeo permite uma fusão quase completa desses diversos modos de produção, construindo um produto singular, que pouco evoca a sensação de colagem.

Em relação à qualidade artística, o videoclipe apresenta méritos técnicos como, por exemplo, o tratamento de cor citado, mas também temáticos. Nesse ponto, a justaposição de todos os elementos audiovisuais, isto é, da canção, do ambiente, da caracterização da artista, da captação e edição, constrói um sentido único, sensível desde os primeiros segundos da produção.

Notas

[1] O videoclipe de “Rito de Passá” foi lançando em 1º de fevereiro de 2019, no YouTube, e o álbum em 21 de junho de 2019. “Coração Vagabundo” foi lançado em 13 de fevereiro de 2020. 

Referências

GOODWIN, A. Dancing in the distraction factory: music television and popular music. Mineápolis: University of Minnesota, 1992.HOLZBACH, A. A invenção do videoclipe: a história por trás da consolidação de um gênero audiovisual. Curitiba: Appris, 2016.

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