Por Davi Barroso
O Panetone Bauducco é sinônimo de Natal aqui no Brasil. Nessa época, a marca investe mais em publicidade do que em qualquer outro período e sempre busca se associar aos sentimentos e desejos de consumo que permeiam a sociedade naquele ano. Não foi diferente em 2020. Diante do contexto pandêmico, a marca procurou explorar o sentimento de nostalgia em relação à data e mostrar que, independente da situação, ela está sempre presente nas celebrações familiares. Segundo o site da empresa, ela deu seus primeiros passos em 1948, com Carlo Bauducco, um imigrante italiano. Depois de perder muito dinheiro investindo em máquinas de produzir pães franceses junto com um fazendeiro brasileiro, ele veio ao Brasil prestar contas e acabou decidindo vender tudo na Itália para abrir uma confeitaria no Brás, em São Paulo: A Confeitaria Bauducco. Em 1962 foi construída uma fábrica em Guarulhos (SP), com pedidos vindos de todo o Brasil. Nessa época, “o Panetone já estava conquistando espaço cativo na mesa da família brasileira”.
Com o passar dos anos, a Bauducco começou a construir uma identidade visual sólida, bem como o seu posicionamento de marca (RIES, A.; TROUT, J., 2009), refletidos no conteúdo publicitário da empresa. Seus primeiros anúncios televisivos mostravam o Sr. Bauducco e seus filhos preparando receitas para sua família. Desde os contatos iniciais da marca com a propaganda, os temas família, afeto e consideração com o cliente são centrais. Assim , foram moldando a relação entre a família brasileira e a empresa Bauducco. Em consonância com essa estratégia, em meados dos anos 1970, surgiu o primeiro slogan da marca “ Da família Bauducco para a sua família.’
Hoje em dia, a Bauducco possui três fábricas em Guarulhos (SP) e outra em Extrema (MG) e é a 39ª marca mais valiosa do país, avaliada em US$ 325 milhões, segundo o Portal Amis. É uma empresa de capital fechado e de razão social “Pandurata Alimentos”, dona de outras marcas do setor alimentício, que também produzem panetones com menor preço, como a Tommy ou a Visconti, além de outros tipos de alimentos, como a Fritex. A Pandurata é uma das maiores associações de empresas alimentícias no Brasil e tem parceria comercial com a marca norte- americana Hersheys.
Mesmo com as mudanças pelas quais a marca passou recentemente, sua estratégia de comunicação mercadológica continua coerente com o caminho traçado no princípio de seu mais de meio século de história. Sempre emotiva, ela gira em torno dos mesmos valores desde o início, que são família, tradição e afeto. Neste texto analisamos a campanha publicitária da Bauducco para o Natal de 2020, que contou com novas estratégias multiplataformas e um novo posicionamento da marca após 23 anos.
“Na campanha 2020, o Panettone continua como um forte representante de conexão familiar, carinho e elo do Natal, mas é o Chocottone o grande protagonista do nosso portfólio para a data. Ele impulsiona o rejuvenescimento da categoria e ganha frentes de comunicação disruptivas que atingem o público jovem e os consumidores que amam chocolate. A diferenciação, via inovação, em formatos e produtos para novos momentos de consumo dão vida à estratégia de Natal Bauducco deste ano”, conta Juliana Corá, grouper de Marketing da Bauducco para a Marca Mais.
O novo posicionamento da empresa, “Um sentimento chamado família”, que tomou o lugar do antigo “Da família Bauducco para a sua família”, foi criado juntamente com a CP+B Brasil e produzido em meio às diferentes crises sociais e econômicas causadas pelo COVID-19, o que representou um novo desafio para a produção de publicidade nesse ano.
A campanha do Natal de 2020 contou com “challenges” de dança, populares principalmente na rede social TikTok, ao som de uma música remixada pelo Dennis DJ. Os posts publicitários foram feitos por influencers, como Maísa, e contava com diversas embalagens de produtos Bauducco no cenário e decorações natalinas.
Além das estratégias citadas, a campanha teve como peça principal um filme publicitário direcionado ao público mais tradicional da marca, cuja narrativa é focada nos desafios enfrentados pelas famílias durante o Natal 2020 devido às adversidades causadas pelo novo coronavírus. Este vídeo é o objeto do nosso estudo, o qual procuramos observar através das lentes da literacia midiática, para que se forme uma análise crítica sobre a construção da mensagem nessa publicidade em meio ao contexto social e comercial da pandemia. Este texto irá focar nas seguintes dimensões: Linguagem, Estética, Tecnologia, Processos de produção e difusão e Ideologia e valores. (FERRÉS; PISCITELLI, 2015)
O comercial possui uma estética retrô, isto é: referências estilísticas do passado reconfiguradas através de uma lente moderna. De maneira mais aprofundada, é um objeto produzido hoje, que remete a algo passado, como uma homenagem ou inspiração. Esse termo é francês e surgiu nos anos 1960, a partir da palavra “retrógrado”. O estilo retrô é também um símbolo que sempre vem e volta nas tendências e normalmente com roupagens e referências de diferentes épocas, pessoas, objetos, etc. O simbolismo é sobre a relação das pessoas no presente com o passado.
“A razão principal da tão frequente mudança das formas está, na maioria dos casos, relacionada com o elemento simbólico. Não por motivos de funcionalidade, mas precisamente por motivos simbólicos expressivos. […] cada objeto singular pode ser identificado […] com uma unidade formal distinta e capaz de fornecer uma mensagem particular.” (DORFLES, 2002, p. 54).
No filme da Bauducco, essa estética se apresenta através das peças de roupas, como jardineiras, camisas listradas que estavam na moda nos anos 1980 e 1990, objetos como uma fita cassete, televisões antigas e a combinação das cores, o tom e textura do próprio vídeo, até mesmo o corte de cabelo dos personagens remetem àquelas décadas. Essa identidade visual está em ascensão em diversas áreas da indústria cultural, como a moda, a decoração e entretenimento como o sucesso da Netflix: Stranger Things. Essa série é ambientada nos anos 1980 e incorpora em sua narrativa toda a nostalgia e referência do estilo de vida, tecnologias e personalidades que marcaram a época.
O estilo retrô tem essa “sensação” de passado como uma de suas principais características. Não é apenas um tipo de roupagem ou linguagem fílmica, ele se estabelece como uma relação entre passado, presente e futuro, com a multiplicidade de experiências e conhecimento que essas relações de tempo carregam (Rohenkohl).
Luiza Loyola, especialista da consultoria de tendências WGSN, afirmou para o “Meio & Mensagem”: “Hoje, a nostalgia é uma ferramenta de vendas extremamente poderosa. As marcas estão aproveitando o conforto e a autenticidade do passado, reinventando e/ou redirecionando produtos retrôs. Para os jovens que buscam experiência, trata-se de viver o presente com o passado – criando novos momentos a partir das memórias”
A partir do entendimento claro sobre a importância do retrô para a publicidade atual, bem como das emoções ligadas à nostalgia, podemos entender melhor essa escolha de estilo no filme da Bauducco. O vídeo começa com duas crianças na sala de uma casa, com tons opacos dominando o filme e cores primárias em sua maioria no figurino dos personagens. A casa é grande e parece pertencer a uma família de alto poder aquisitivo, os móveis apresentados não indicam o tempo em que a propaganda se passa, isso é: O estilo retrô aqui, confunde o espectador em relação ao momento histórico em que essa propaganda se situa, mas esse fator será mais aprofundado ao longo da análise.
As crianças são o foco no início do vídeo, elas não estão fazendo nada específico, apenas observando a sua volta. Uma delas está deitada no chão ao lado de um cachorro pequeno e a outra criança está olhando uma joaninha que anda pela janela, essas duas crianças parecem ser irmãos. Enquanto isso, uma mulher adulta está sentada em frente a uma mesa e parece compenetrada em algo, como trabalho ou uma leitura. Ao mesmo tempo, um voice over narra sobre memórias de Natais passados e afirma que esse l será o mais especial de todos.
O áudio da peça traz, através do tom da voz e da trilha sonora, uma melancolia, um sentimento de saudade reforçados pela própria mensagem do comercial. Mas também, por outro lado, confere até mesmo uma positividade a esse Natal diferente de todos os outros que já vivemos. As reflexões sobre como seria o Natal de 2020 estavam muito presentes durante o período em que a peça foi veiculada. Isso destaca a importância do contexto social na produção e distribuição de uma campanha publicitária. Durante todo o filme, o vírus e suas tragédias não são citados diretamente, mas a narrativa foca em transformar essa crise em algo “especial” ou” fora do comum”, que contribuirá para que a data seja mais especial ainda nesse ano pandêmico.
A partir do segundo 09’, as crianças correm para a sala de TV e no caminho pegam um pedaço de panetone e uma fita cassete com um rótulo escrito “Família 97”.
Ainda não está claro em que ano essa peça publicitária está ambientada. Quando uma das crianças coloca a fita cassete para rodar, surge um vídeo caseiro. Logo percebe-se que se trata de um registro antigo, devido às roupas, à decoração, à qualidade da imagem e ao título que estava escrito na fita.
O momento retratado é o de um Natal em família, com pessoas sorrindo, brincando, a mesa cheia de comida e claro, um close shot do panetone da Bauducco. No final do vídeo, aparece uma garotinha de franja sorrindo para a câmera durante alguns segundos. A fita acaba e imediatamente é cortado para um primeiro plano de mulher adulta sorrindo e que também tem franja, dando a entender que a garotinha e essa mulher são a mesma pessoa. Ela é a mesma pessoa que estava sentada à mesa, concentrada, no início do curta. Desse modo, descobrimos que as crianças estavam assistindo um vídeo caseiro do Natal de quando a mãe deles era criança, no ano de 1997.
Agora, a mãe observa seus filhos gravarem esse filme em um telefone celular, enquanto ela sorri. O discurso aqui é de que a Bauducco é associada à família – faz parte de uma tradição de décadas, ao carrinho e outros valores que são intrínsecos ao “Natal em família” estereotipado do nosso país. Um “modelo” que a publicidade brasileira tanto contribuiu para estabelecer ao longo de sua história.
Essa relação é transmitida pelos personagens e o apelo a memórias afetivas que eles carregam em relação à família, memória e afeto, temas que estavam em destaque na discussão pública sobre como seria o Natal de 2020, considerando a perpetuação da gravidade da pandemia.
Após a gravação, as crianças enviam o conteúdo para seus parentes e as reações ilustram esses sentimentos. Por exemplo, o olhar da avó ao assistir o vídeo agrega forte emoção ao filme. Através de toda a narrativa da peça, esse olhar ganha peso e relevância.
Ao mesmo tempo que o curta tece a relação romântica e idealizada de um Natal em família e o Panetone Bauducco, ela tem seu conteúdo todo baseado em um estereótipo e até mesmo caricato da família tradicional brasileira e os papéis sociais que cada indivíduo cumpre. Isso não faz com que a peça deixe de ser emotiva e envolvente Na verdade, ela cria esses significados emocionais com muita eficiência e reforça os imaginários sociais de uma “família perfeita”. Mas a verdadeira família brasileira não segue uma fórmula, as relações humanas e os papéis sociais são variados e a magia deste Natal padronizado não é a realidade de muitas famílias, principalmente em meio a uma pandemia. Assim o comercial contribui, mesmo que não intencionalmente, para naturalizar processos de exclusão que são tão acentuados em nosso país.
Após as crianças compartilharem os vídeos, um plano detalhe destaca um pequeno porta-retrato antigo com uma fotografia em preto e branco, rapidamente o foco da câmera muda para um smartphone recebendo mensagens, que está ao lado do retrato. Novamente a peça faz alusão ao contraste entre o antigo e o novo, em como as coisas eram e como elas estão agora e que existe um ponto de união entre elas, que nesse caso é a “tradição” do Panetone da Bauducco no Natal. Um homem pega o celular e assiste à gravação das crianças. Em seguida, em outro cenário, um casal de idosos faz o mesmo em outro aparelho. As expressões de comoção em seus rostos são marcantes, levando à conclusão de que ele compartilhou o vídeo com os avós das crianças.
A alusão ao distanciamento social entre os parentes no Natal de 2020 é uma outra maneira de manipular emocionalmente o espectador, para associar o produto à saudade intrínseca a esse momento que a peça se dispõe a retratar.
Depois, é cortado para aquelas duas crianças sentadas no chão da sala assistindo o vídeo na televisão antiga da sala e os pais observando-os e sorrindo. É possível inferir que todas as pessoas que assistem às cenas em seus celulares estavam presentes naquele Natal de 1997 e hoje não podem estar juntos devido à pandemia.
O comercial termina com uma imagem das caixas de Panetone e Chocotone Bauducco, uma ao lado da outra, com luzes de natal desfocadas no plano de fundo e uma mensagem com a fonte da própria Bauducco de cor branca, que diz: “Um sentimento chamado Família”. A utilização do “sentimento” chamado família como slogan se projeta como emotiva, inclusiva e universal, já que todos têm algum tipo de família. Porém, essa peça se mostra ao mesmo tempo pouco inclusiva, já que a única família que foi escolhida para representar esse sentimento é aquela estereotipada como a “família tradicional brasileira”, composta por pessoas brancas e de classe social alta. Não existe pluralidade nessa representação, logo se torna excludente esse sentimento àqueles que não partilham desse “molde” padronizado do mercado durante o Natal.
Por isso, se torna necessário um ponto de vista crítico em relação a produções pautadas em valores e estereótipos comuns na mídia e que ajudam a perpetuar a marginalização de famílias e pessoas que desviam do padrão branco, rico e hétero que predomina nos discursos publicitários quando se trata de valores mais tradicionais como a família brasileira ou o Natal. Porém, existem também aquelas marcas que utilizam de uma estratégia mais profunda e não excludente, como a campanha do Bradesco para o dias dos pais, ou a campanha do próprio Natal de 2020 da Natura, analisadas pelo nosso grupo de pesquisa, que também recorreram a um discurso tão intimista e emotivo quanto a Bauducco, mas não se ateve somente a estereótipos para representação do seu consumidor.
Por fim, essa peça apresenta forte amparo tecnológico na produção, em termos de qualidade de imagem, cortes, colorimetria e outras técnicas acerca da construção da mensagem audiovisual. Ela também demonstra profundidade na escolha estética, que carrega tanto um significado das tendências da indústria cultural, quanto como parte dos valores que a marca almeja incorporar, que giram em torno dos aspectos de tradição, família e mudança. Por outro lado, esse comercial tem a sensibilidade de trazer para sua narrativa uma questão que toda a população tem enfrentado, que é o desafio de ter que passar o Natal de acordo com as circunstâncias da pandemia do novo coronavírus. Esse pequeno sacrifício por um bem maior no ambiente familiar, é o verdadeiro apelo emocional que a marca mira para atingir no espectador.
Referências
FERRÉS, J.; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, v. 9, n. 1, 30 jun. 2015. Disponível em: https://bit.ly/36ikXzZ.
* Todas as fotografias são capturas de tela.
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