Observatório da Qualidade no Audiovisual

Estranha Mente

Estranha Mente é um seriado de televisão que estreou no canal Multishow em 3 de outubro de 2012. Cada uma das três temporadas exibidas até o final de 2014 contém 13 episódios. As cinco emissões analisadas neste estudo foram escritas por Fernando Caruso, Jaiê, Luiza Yabrudi e Eduardo Rios, que apostam em esquetes baseadas em situações reais “e às vezes surreais” da mente de Fernando, como o próprio programa define. Protagonizado por Caruso, o elenco ainda conta com Hamilton Dias, Mari Cabral, Márcio Lima, Roberta Brisson, Paulo Dodô, Ricardo Rossini, Diogo Costa, Raphael Logam e Alexandre Régis.

No plano da expressão, um dos aspectos que chama a atenção do espectador é a vinheta de abertura do programa, que traz a voz de Fernando Caruso explicando a quinta dimensão não conhecida pelo homem: a imaginação dele. Durante a narração, apenas círculos verdes aparecem na tela, e logo depois o seu rosto é colocado em diferentes contextos do dia-a-dia. Cada episódio tem entre sete e 11 esquetes que se misturam ao longo da narrativa e trazem Fernando Caruso interpretando diferentes personagens ou até ele próprio.

O tom descontraído do programa se dá pelo seu fechamento, que mostra os créditos dentro de uma nuvem branca e verde na parte de baixo do plano enquanto os erros de gravação vão sendo mostrados na tela, com gírias e palavrões sendo falados, como “porra”, “cretino”, “merda”, “sacanagem” e “caralho”. Além disso, os episódios exibem frequentemente vinhetas toscas em determinados esquetes e efeitos especiais mal elaborados, deixando claro que o objetivo do programa não é ser verossímil, mas despertar o riso pelo grotesco.

No plano do conteúdo, o indicador diversidade de sujeitos representados obteve avaliação razoável. O episódio que mais se destacou foi o exibido no dia 19 de junho de 2013, cuja análise foi considerável quanto à representação de grupos sociais no esquete das dúvidas sobre a Tuberculose. A partir dos 13 minutos e 36 segundos, uma agente de saúde em uma sala com cartazes ao fundo, livros e jarra de suco de frutas na mesa, tenta informar às pessoas e tirar as suas dúvidas sobre o assunto. Após um breve panorama sobre a doença, quatro personagens homens em lugares diferentes, com vestimentas de estilos distintos e realizando ações também diferentes, começam a aparecer na tela com perguntas, o que deixa claro o objetivo do programa em simular a diversidade buscada pelas entrevistas que consultam o público na rua.

Porém, mais do que simular, Estranha Mente satiriza essa tentativa da diversidade ao trazer personagens de diferentes classes sociais fazendo perguntas repetidas, ou sem sentido, e mostrando as respostas da agente de saúde, que progressivamente vai ficando irritada: “por quê que vocês estão fazendo isso comigo?”, dramatiza ela. Em seguida, Fernando Caruso aparece na tela falando sobre a ignorância como uma doença, referência clara aos quatro personagens mostrados anteriormente, que muitas vezes representam o público da vida real mostrado nas entrevistas, que não faz perguntas relevantes ou realmente pertinentes sobre o assunto.

O indicador de qualidade desconstrução de estereótipos não foi muito identificado no programa. Nas cinco emissões analisadas de Estranha Mente, este recurso é usado para afirmar estigmas e pré-conceitos já existentes na sociedade atual, como o de que toda mulher é interesseira ou o de que “advogado fala, fala, e não diz nada”. No episódio exibido no dia 3 de outubro de 2012, por exemplo, aos 14 minutos e 16 segundos se inicia um esquete em que dois amigos estão no bar de uma boate e um deles tenta paquerar a funcionária do local. Vendo que a menina reage de maneira arrogante, o rapaz decide apelar para a frase “eu tenho um programa no Multishow” e consegue o que quer: um beijo da garota. Essa cena, apesar de curta, reforçou o estereótipo de que existem mulheres que só se relacionam com outra pessoa por causa do status que sua profissão tem na sociedade.

No quinto episódio aqui analisado, exibido no dia 19 de junho de 2013, outra situação em que há a afirmação do estereótipo, está no esquete do tribunal do júri, em que Fernando Caruso interpreta um advogado de defesa que, apesar de falar muito, só diz coisas sem sentido. O senso comum de que “advogado fala, fala, e não diz nada”, que vale para muitos profissionais da área jurídica, é reafirmado nesse esquete pelo exagero das falas do advogado e pelas reações dos demais personagens, que, diante das falas confusas, tentam compreender minimamente o advogado.

Ainda sobre utilizar a ferramenta do estereótipo para afirmar paradigmas sociais, no episódio do dia 3 de outubro de 2012 o programa conseguiu, sem nenhuma fala, apenas com uma música de fundo, reforçar a ideia de que a banda Calypso não é boa ao mostrar a frase “Dançar Calypso na festa da firma é crime. Tudo bem, não é. Mas deveria”, após sucessivas fotos de pessoas supostamente presas.

O indicador de qualidade oportunidade foi identificado de forma razoável nas emissões analisadas, pois, apesar de não tratar de assuntos presentes na agenda midiática, traz para o público temas do dia-a-dia de qualquer pessoa, sendo esse tema relevante ou não. No quadro Cinemón, do episódio exibido no dia 24 de abril de 2013, por exemplo, ao invés de Fernando Caruso satirizar os especialistas de cinema fazendo referência a filmes atuais, foi usado como objeto o filme Karate Kid, que, apesar de ser um clássico, foi lançado em 1994.

No último indicador de qualidade do plano do conteúdo, ampliação do horizonte do público, percebe-se que o programa fracassou. Foram poucos os momentos em que foi possível estimular o pensamento e o debate no espectador e, mesmo nos esquetes em que isso foi feito, o programa pecou com o excesso da piada e acabou por reforçar algum estereótipo. Isso é o que ocorre no primeiro episódio do seriado, exibido no dia 3 de outubro de 2012, no esquete em que uma cena de crime está sendo gravada. Após o “corta” falado em off, o esquete continua com os personagens incorporando suas próprias personalidades. Na sequência da identificação dos atores, a partir dos 17 minutos, Rafael Logan e Fernando Caruso iniciam um diálogo em que Rafael questiona Caruso sobre os papeis que sempre são destinados a ele, de assaltante ou sequestrador, insinuando que seja devido à cor da sua pele, que é negra.

Esse contexto permite que o público reflita sobre a real situação de atrizes e atores negros na televisão brasileira, que comumente são vistos como domésticas, seguranças, faxineiros, babás, motoristas, caseiros, vigias, ou qualquer qualificação que permeia o crime. Entretanto, apesar disso, Estranha Mente acaba mais uma vez afirmando estereótipos, por querer fazer piada de tudo, inclusive de uma discussão séria como essa. No esquete acima citado, Fernando Caruso se compromete a ajudar Rafael Logan para reparar o seu erro e, então, o coloca para interpretar uma Branca de Neve, personagem desejada por Logan, o que é irônico, já que uma Branca de Neve dificilmente seria interpretada por um homem negro. Na sequência, um ator anão também questiona Caruso sobre os seus repetidos papeis, e mais uma vez o suposto diretor da cena ajuda o colega: Fernando coloca o anão para interpretar um jogador de basquete que faz muitas cestas e que é melhor que todos os outros jogadores, de estatura mediana.

Entretanto, o que é comum às duas subversões de papeis é que ambos os personagens saem prejudicados (a Branca de Neve é abandonada sozinha na cena e o jogador de basquete fica preso na cesta), o que invalida totalmente a necessidade de se diversificar os papeis sociais dos atores, diminuindo a importância da causa.

Abaixo, as avaliações dos indicadores de qualidade do plano do conteúdo:

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Na mensagem audiovisual, o indicador de qualidade clareza da proposta foi muito bem avaliado em todas as emissões analisadas. O conjunto de elementos do plano da expressão – como a vinheta de abertura descontraída, a linguagem informal e a repetição do primeiro esquete, que é comum a todos os episódios – conferem ao programa uma exposição audiovisual clara dos seus objetivos. “Agora o comediante vai contar uma piada sem ofender ninguém” é a frase comum a todos os episódios e precede o esquete que traz Fernando Caruso interpretando um comediante que fracassa ao tentar fazer piadas sendo politicamente correto. Presentes nesse início, é possível perceber que a ironia e a afirmação de conceitos podem ser ferramentas constantes no programa.

O indicador diálogo com/entre outras plataformas teve uma avaliação considerável, visto que em vários momentos há a interação com diferentes tipos de conteúdos e menções a lugares e filmes existentes fora da ficção, como no quadro Cinemón, em que Fernando Caruso interpreta um crítico de cinema e cita filmes reais, como Robocop 3 e Karate Kid 4, e faz referência, de forma satírica, aos verdadeiros programas que se dedicam às análises de filmes. Além disso, o programa também menciona lugares como Casaquistão, Afeganistão e Argentina, e traz Fernando Caruso dialogando com a plataforma da internet ao pedir, aos 15 min e 40 segundos do episódio do dia 15 de maio de 2013, por exemplo, que o telespectador entre no site do Multishow para interagir com o programa e escolher o novo personagem que ele quer ver nos esquetes.

O indicador solicitação da participação ativa do público teve uma avaliação razoável nas emissões aqui analisadas. Isso se deve, principalmente, à linguagem informal utilizada, como já falado, e à interação personagem-público estabelecida quando os personagens olham para a câmera como se conversassem com o espectador. No quadro Dr. Toko, por exemplo, Fernando Caruso interpreta um médico especialista em desvendar os sentimentos de um homem rejeitado por uma mulher, olhando para a câmera como na intenção de ensinar ao público como essa rejeição é sentida pelo homem. Usando palavras como “vocês” e fazendo perguntas como “viu?” quando somente Caruso está em cena, fica claro que o programa deseja interagir com o público e fazê-lo permanecer no canal.

Originalidade e criatividade não são elementos muito presentes em Estranha Mente. A nota fraca foi atribuída ao programa porque este não apresenta um formato diferenciado com ideias novas que surpreendem o público, apenas abordam os temas de forma exagerada, fazendo uso da sátira e da ironia para dar ênfase a assuntos muitas vezes irrelevantes que em nada têm para acrescentar à sociedade.

A seguir, podemos observar a avaliação que cada indicador recebeu na mensagem audiovisual:

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Analisando os modos de representação dos personagens na construção das cenas e dos diálogos, e o uso dos recursos técnico-expressivos, que contribuem para a construção de uma narrativa que pode promover a reflexão e o debate de ideias, observamos que Estranha Mente explora pouco essas potencialidades. Como visto, temas relevantes para a sociedade até foram abordados, mas não com a complexidade que merecem, o que acaba fazendo do programa mais uma ferramenta de banalização da televisão e da questão em pauta.

Além de não trazer para o público nada de novo em relação ao formato adotado, o programa utiliza efeitos especiais e roteiro pouco verossímeis (como identificado nos disparos das armas de fogo que não ocasionam nenhum sangramento nas vítimas atingidas) que causam estranhamento no público. Na cena da gravação de um crime exibida dia 2 de outubro de 2012, como já mencionado anteriormente, a partir dos 8 minutos e 30 segundos, Rafael Logan, que interpreta um criminoso, pega nos braços a vítima que está aparentemente morta e começa a mexer seu queixo e lábios como se esta estivesse falando. Escondendo a sua cabeça atrás do corpo da menina, Logan afina a voz e dá início a um roteiro distante da realidade que banaliza a situação de um crime e põe em cheque a competência da classe policial. “Eu não tô morta não, foi tudo um grande mal entendido. Ó, é bom fazer tudo que ele tá mandando. Ele é bem mal”, mascara o criminoso.

A construção desta cena é um exemplo de como o programa banaliza situações sérias antes de chegarem no ponto principal da cena. Ainda assim, quando abordam o assunto chave também acabam banalizando a situação para gerar o riso, invalidando-a por se aproximar do grotesco. Dessa forma, torna-se inexistente na série aqui analisada um ponto de vista diferente em relação à maioria dos programas da televisão brasileira que geram o riso. Sem esse diferencial na experimentação e sem essa complexidade da representação, Estranha Mente se mostra mais um exemplo das tantas “reciclagens” da nossa programação televisual brasileira, visto que não apresenta recursos suficientes para levantar reflexões na sociedade.

Por Luma Perobeli

Observatório da Qualidade no Audiovisual

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