Observatório da Qualidade no Audiovisual

Limantha e o papel da representatividade nas fanfics de As Five

Por Daiana Sigiliano

Produzido pelo Globoplay o spin-off As Five (2020-atual) dá continuidade ao universo ficcional da telenovela Malhação: Viva a Diferença (Rede Globo, 2017-2018), criada por Cao Hamburger. Na trama Keyla (Gabriela Medvedovski), Ellen (Heslaine Vieira), Lica (Manoela Aliperti),Tina (Ana Hikari) e Benê (Daphne Bozaski) se reencontram após seis anos sem se verem. As personagens estão no começo da vida adulta e enfrentam conflitos comuns à Geração Z. Entre os temas abordados na série estão o feminismo, o preconceito, a xenofobia, o capacitismo e a maternidade solo. 

Nos últimos anos as comunidades de fãs se tornaram ambientes pautados pela produção cultural, política e crítica (JAMISON, 2017). Os fandoms criam espaços de aprendizagem informal em que os jovens desenvolvem habilidades relacionadas à competência midiática enquanto produzem conteúdos criativos sobre os universos ficcionais contemporâneos. A partir deste contexto, esta análise tem o objetivo de discutir a inter-relação entre a competência midiática e as práticas da cultura de fãs no Brasil, especificamente na criação de fanfics direcionadas para o público jovem. 

Para a reflexão desta questão iremos adotar a metodologia proposta por Ferrés e Piscitelli (2015) para avaliar e promover o desenvolvimento da competência midiática na cultura participativa. Os autores definiram seis dimensões a partir das quais os indicadores são elaborados, são elas: linguagem, ideologia e valores, estética, tecnologia, processos de interação e de produção e difusão. Nesta análise iremos focar na dimensão Linguagem, Ideologia e Valores, e Estética. A partir deste contexto, foram aplicados questionários on-line com questões discursivas pré-determinadas e direcionadas aos fãs que produzem fanfics sobre a série As Five. Posteriormente, as respostas foram sistematizadas a partir do software de análise qualitativa de dados Atlas.it.

No software codificamos os trechos das entrevistas em que as dimensões de estavam em operação. Ou seja, foram criados três códigos no software, são eles: Dimensão Linguagem (DL), Dimensão Ideologia e Valores (DIV) e Dimensão Estética (DE). Também configuramos o código Informação Geral (ID), para reunirmos informações tais como nome, e-mail, perfil em redes sociais e plataformas digitais dos fãs. Num segundo momento, após o agrupamento dos conteúdos a partir dos códigos DL, DIV, DE E ID criamos uma rede semântica para cada dimensão.

Imagem 1: Rede Semântica gerada a partir do código Informação Geral (ID)

O primeiro contato que a fã Tamires Chaves teve com a fanfic foi aos 14 anos, a trama era uma real pearson fic da girl group estadunidense Fifth Harmony, protagonizada pelo casal headcanon Camren (Camila + Lauren). Como detalha Tamires, a história “[…] me ajudou a lidar com as questões sobre a minha própria sexualidade, onde fiz muitas amizades que me entendiam e apoiavam, já que se encontravam na mesma situação”. Assim como outras autoras do fandom de Limantha, os femslashs produzidos a partir do shipp de Lauren Jauregui e Camila Cabello serviram de ponto de partida para o consumo e a produção de fanfics e também ajudaram na reflexão de questões voltadas para a identidade e a orientação sexual. Este repertório comum, compartilhado por parte dos fãs entrevistados neste projeto, está relacionado ao processo interpretativo pautado em competências culturais preestabelecidas. Segundo Jenkins (2015) alguns fandoms tendem a apresentar interesses e referências semelhantes, indo além de um seriado, um filme e/ou um livro específico. Isto é, muitos conteúdos midiáticos servem de porta de entrada para uma comunidade de fãs mais ampla. No caso de Limantha além das fanfics sobre as integrantes da banda Fifth Harmony observamos outros conteúdos que são constantemente citados pelas autoras, seja como o primeiro contato com as práticas da cultura de fãs (fanfics, fanarts, vídeos on crack, etc) ou com ponto de partida para o consumo de outras narrativas ficcionais seriadas que abordam temáticas LGBTQIA+. Como, por exemplo, a série The L Word (Showtime, 2004 – 2009). A trama é considerada um marco na TV estadunidense, como ressalta Agostini (2010, p.8), “Mais que apresentar um grupo de lésbicas, a série tira as personagens homossexuais de papéis coadjuvantes, trazendo-as para os holofotes.”

Atualmente Tamires Chaves publica suas fanfics na plataforma Spirit Fanfics e Histórias. No perfil da fã estão disponíveis duas histórias, Don’t Judge Me e Desencontros Literários, ambas protagonizadas pelo shipp Limantha. Como iremos detalhar mais adiante, as fanfics ampliam e ressignificam o universo ficcional de Cao Hamburger, explorando novos gêneros (universo alternativo, poesia, Shoujo, etc) e arcos narrativos que abordam o consumo de drogas e o sexo de maneira mais explícita. Além da produção das tramas, que ainda estão sendo atualizadas periodicamente, Tamires também se mantém ativa em outras seções da plataforma, tais como “Listas de Leitura” e “Favoritos”, assumindo o papel de leitora e escritora. 

Imagem 2: Rede Semântica gerada a partir do código Dimensão Linguagem (DL)

De acordo com Ferrés e Piscitelli (2015) além da capacidade de interpretar, avaliar, analisar, compreender e correlacionar diversos códigos, formatos e gêneros midiáticos, a dimensão Linguagem está relacionada com a habilidade de produzir e ressignificar conteúdos a partir de diversos modos de representação e produção de sentido. Neste sentido, a dimensão está em operação, de maneira mais ampla, na própria prática da fanfic. Ou seja, ao elaborar novos desdobramentos a partir do cânone a fã Tamires Chaves reflete sobre os formatos narrativos e explora outras possibilidades do universo ficcional de Cao Hamburger. Como afirma Grossman (2017, p. 13), “Escrever e ler fanfiction não é apenas algo que você faz; é uma forma de pensar criticamente sobre a mídia que você consume, de estar consciente de todas as suposições implícitas que um trabalho canônico  carrega, e de considerar a possibilidade de que aquelas suposições poderiam não ser as únicas existentes”. Tamires pontua que as fanfics funcionam como uma espécie de laboratório de escrita, pois futuramente ela pretende se profissionalizar. “Pretendo me tornar uma escritora publicada no futuro, e uso desse meio para a pesquisa e treino das habilidades criativas e narrativas”, detalha.  

As histórias disponibilizadas pela fã no Spirit Fanfics e Histórias são compostas por uma capa, a imagem é uma montagem com as protagonistas, o título e alguns elementos gráficos. Além de padronizar a apresentação das tramas, a capa sistematiza pontos importantes da fanfic tais como a temática LGBTQIA+ e o gênero (romance, suspense, mistério, etc.). Em Desencontros Literários todos capítulos são introduzidos com uma imagem, o recurso multimodal geralmente é voltado para o âmbito literário, reforçando o universo alternativo criado por Tamires. De acordo com Jamison (2017, p. 37), ao acessarmos as plataformas digitais de compartilhamento de fanfic encontramos “[…] uma variedade de tags ou rótulos que ajudam leitores a ordenar e localizar histórias”. Esta categorização apurada das tramas pode ser observada em Desencontros Literários e Don’t Judge Me, os conteúdos apresentam cerca de dezoito indexações, abrangendo temas, gêneros e formatos. Desde modo a capacidade de identificar distintas linguagens e códigos está em operação nas histórias da fã desde a construção da fanfic até a publicação na plataforma Spirit Fanfics e Histórias

A dimensão Linguagem, proposta por Ferrés e Piscitelli (2015), também pode ser observada na habilidade de Tamires em identificar as especificidades do formato audiovisual e da narrativa em prosa. Segundo a fã, ao transpor o cânone de uma narrativa ficcional seriada televisiva para a fanfic é preciso aprofundar alguns elementos como, por exemplo, a reação dos personagens diante das situações. Como o leitor não poderá assistir a sequência, como acontece no paratexto, é fundamental que a autora saiba descrever de maneira detalhada o comportamento do personagem em questão. “Gosto de aprofundar na psique de todos os personagens que escrevo e recrio, buscando explorar suas motivações, seus anseios, medos e traumas, tudo para torná-lo ainda mais real e tangível para o público”, pontua a fã. Tamires também afirma que os sentimentos das personagens são explorados na história a partir de vários recursos tais como ações, gestos, pensamentos, referências intertextuais, etc.

Segundo Jamison (2015) e Korobkova e Black (2014) a criação e a leitura de fanfics é uma prática coletiva e estimula a aprendizagem informal dos fãs. Em outras palavras, “[…] não se trata apenas de escrever histórias sobre personagens e mundos existentes – é escrever histórias para uma comunidade de leitores que já querem lê-las, que querem conversar sobre elas e podem estar escrevendo, também” (JAMISON, 2017, p.49). Como discutimos em análises anteriores, a arquitetura operacional das plataformas de fanfics possibilita a troca de comentários entre os autores e os leitores dos conteúdos. Em Desencontros Literários e Don’t Judge Me este espaço de conversação é usado não só para estimular o engajamento dos leitores, mas como parte do processo criativo de Tamires. Frequentemente a fã comenta sobre suas dificuldades no desenvolvimento do capítulo e pede que os integrantes compartilhem suas impressões e sugestões sobre a trama. Deste modo, a conversação gerada no Spirit Fanfics e Histórias promove a reflexão dos modos críticos e criativos que envolvem esta prática da cultura de fãs. Tamires afirma que o fandom de Limantha desempenha um papel importante na divulgação das fanfics para outros fãs e nichos, ampliando ainda mais o debate em torno do shipp

Imagem 3: Rede Semântica gerada a partir do código Dimensão Ideologia e Valores (DIV)

De acordo com Ferrés e Piscitelli (2015) a dimensão Ideologia e Valores ressalta a capacidade de avaliar, analisar, reconhecer os conteúdos considerando seus distintos recortes culturais e sociais, identificando e questionando os estereótipos (de gênero, raça, etnia, classe social, religião, etc.) e os mecanismos de manipulação. Além da habilidade de elaborar e modificar os conteúdos midiáticos, se comprometendo com a cidadania, a fim de transmitir valores e colaborar para a melhoria da sociedade. A dimensão proposta pelos autores pode ser observada na escolha do casal Lica (Manoela Aliperti) e Samantha (Giovanna Grigio), segundo Tamires a representatividade foi o que a motivou a criar as fanfics. Jamison (2017) pontua que as histórias protagonizadas por minorias e pautadas pela diversidade apresentam desdobramentos que seriam, de certa forma, inviáveis no mercado comercial, estimulando não só a reflexão do autor sobre os padrões reproduzidos pelo mainstream, mas propiciando aos leitores acesso a conteúdos que se distanciam dos recursos convencionais. Segundo a autora, “O poder da fanfiction está na habilidade de reimaginar textos e resistir a significados impostos pelos criadores destes textos” (JAMISON, 2017, p. 136). 

A fã afirma que ao criar histórias protagonizadas por um casal sáfico e que abordam de maneira mais explícita do que no cânone questões como a sexualidade, ela pretende normalizar estes assuntos e quebrar estereótipos. “Posso dizer que, na maioria dos casos, a busca de fanfics se dá por essa falta de normalidade entre casais LGBTQ+ nas obras audiovisuais. A relação entre o casal principal, nas minhas histórias, se baseia e tem seus problemas em cima das próprias questões individuais de ambos, sem tanta interferência externa, como comumente vemos.”, explica. Deste modo, a dimensão Ideologia e Valores integra tanto a leitura crítica da telenovela e do spin off, em identificar a reprodução de estereótipos, quando a produção criativa de narrativas que são protagonizadas por grupos minoritários e que explorem desdobramentos que rompam a reprodução de padrões do  mainstream. 

Imagem 4: Rede Semântica gerada a partir do código Dimensão Estética (DE)

Segundo Ferrés e Piscitelli (2015) a dimensão Estética se refere à capacidade de relacionar e identificar referências intertextuais, explorando novas camadas interpretativas, e também de produzir conteúdos pautados na criatividade e na originalidade. A dimensão proposta pelos autores está em operação no modo como a Tamires avalia a sua produção criativa e de outros fãs. Isto é, ao listar os pontos que ela considera importantes para uma fanfic de qualidade a fã reflete não só sobre a prática da cultura de fãs, mas da forma como a narrativa deve ser desenvolvida para atingir o seu público alvo. Conforme afirmam Korobkova e Black (2014) ao criar um conteúdo é fundamental que o fã consiga se expressar de acordo com o repertório cultural e metatextual do fandom, ou seja, adotando os temas de interessante coletivo, as referências em comum, as projeções desenvolvidas em outras produções (fanarts, vídeos on crack, fanzines, etc.). Para Tamires uma boa fanfic deve ter elementos que prendam “[…] o leitor na história, a ponto de se sentirem parte dela. Deve ter um bom enredo e uma mensagem positiva para quem lê. Já que, na maioria dos casos, a busca por fanfics se dá justamente por uma insatisfação ou falta de um elemento na narrativa original”. A fã ainda destaca outros recursos como, por exemplo, o equilíbrio entre plots que se abrem e se fecham, para não frustrar o leitor, e a adoção de um planejamento criativo. Em outras palavras, segundo Tamires, mesmo se tratando de uma obra aberta, é fundamental que o fã tenha um objetivo bem definido. A autora afirma que usa o método SnowFlake, que auxilia na organização das suas ideias e na coerência da trama. De acordo com ela o método “[…] ajuda não só a iniciar a história, como também dividi-la em atos, com seus incidentes incitantes (motivos para aquela história acontecer) e os clímax (ponto de maior sentimento, normalmente a chave para resolver o problema gerado pelo incidente incitante). Divido em três atos, tendo como base a Jornada da Heroína, Jornada do Herói, e os arquétipos de Carl Jung.”. Desta forma, podemos observar a capacidade da fã em identificar, compreender e avaliar a importância dos aspectos técnico-expressivos na composição da produção. 

As referências intertextuais também integram o processo criativo e as fanfics disponibilizadas por Tamires. Segundo Jenkins (2015) o fã tem dois modos simultâneos de leitura, são eles o textual e o intertextual. No primeiro modo, ao ler textualmente o público ávido estabelece uma relação íntima, familiar, com o universo ficcional, reconhecendo cada detalhe do metatexto. O segundo modo de leitura é a intertextual e vai além do cânone, nela o fã consegue identificar diversas redes intertextuais entre o paratexto em questão e os referências externas, formando amarrações interpretativas. Tamires pontua que os elementos intertextuais de suas fanfics abrangem diversos formatos e linguagens tais como séries, filmes e até jornais. Em Desencontros Literários e Don’t Judge Me a autora explora tanto correlações entre as protagonistas e os lugares turísticos de São Paulo quanto referências compartilhadas pelo fandom. Como, por exemplo, as constantes citações à personagem Mili, de Chiquititas (SBT, 2013-2015), que assim como Samantha é interpretada pela atriz Giovanna Grigio. Desta forma, a fã explora diversas camadas interpretativas na trama, ampliando a produção de sentido da fanfic

Como podemos observar que processo de desenvolvimento e disponibilização das fanfics de Limantha produzidas por Tamires Chaves vai além da ampliação e ressignificação do cânone. A criação da trama é pautada por estratégias narrativas e pela compreensão do modo como as minorias são representadas no mainstream. 

Referências 

AGOSTINI, A. Lésbicas na TV: The L Word. São Paulo: Malagueta, 2010. 

CHAVES, T. A compreensão crítica e a produção criativa no desenvolvimento de fanfics. Entrevista concedida a Daiana Sigiliano. Observatório da Qualidade no Audiovisual, Juiz de Fora, 2021. 

FERRÉS, J.; PISCITELLI, A. Competência midiática: proposta articulada de dimensões e indicadores. Lumina, v. 9, n, 1, p. 1-16, 2015. Disponível em: <https://goo.gl/3EQnc6>. Acesso em: 24 mai. 2021.

GROSSMAN, L. Apresentação. In JAMISON, A. Fic – Por que a fanfiction está dominando o mundo. Rocco: Rio de Janeiro, 2017, p. 11-16.

JENKINS, H. Invasores do Texto – Fãs e cultura participativa. Rio de Janeiro: Marsupial Editora, 2015.

JAMISON, A. Fic – Por que a fanfiction está dominando o mundo. São Paulo: Rocco, 2017. 

KOROBKOVA, K.; BLACK, R. Contrasting Visions: identity, literacy, and boundary work in a fan community. E–Learning and Digital Media, v.11, n.6, p. 619-632, 2014. Disponível em: <https://bit.ly/3vi3VvG>. Acesso em: 24 mai. 2021.

Informamos que a quarta fase deste projeto (CAAE 51662921.4.0000.5147) foi submetida e está de acordo com os princípios éticos norteadores da ética em pesquisa estabelecido na Res. 466/12 CNS e com a Norma Operacional Nº 001/2013 CNS. Data prevista para o término da pesquisa: março de 2022.

A divulgação dos questionários direcionados aos autores de fanfics sobre Limantha foi realizada com a ajuda do Portal As Five (https://linktr.ee/portalasfive). 

Observatório da Qualidade no Audiovisual

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